É o que se vê. O homem está ali sob um resto de luz que até parece foco de palco. Sem camisa. Abaixo não se enxerga por sobra de sombra. Acima, rosto bem barbeado e uns olhos de fogo claro, pequenos e marotos. Mas está bravo, o homem. Tem dois riscos no meio da testa dividindo as sobrancelhas. A boca é grave. O melhor, porém, é seguir a linha de seu braço. Não esse. É o direito. Ande pela linha muscular que o circunda, o espirala até a mão: uma faca. E como brilha: seu corpo de prata, longilíneo e ameaçador, treme levemente a cada expiração de pulmão ou golfada de coração ou ainda a cada pensamento que escorrega elétrico pelo cérebro do homem.
O homem, que tem nome de árvore, olha a faca entre aterrorizado e maravilhado. José Manacá, é esse seu nome, gira a lâmina ao ar e observa seu delicado fio, esmerilhado a ponto de jóia.
O homem ri. Dá um passo e as nesgas de luz permitem ver que está nu. Dá outro passo, agora para o lado, e se põe junto a uma mesa, pequena e sólida. Com a mão esquerda, instala o pinto sobre a mesa. Ele escorrega. O homem chamado José Manacá se aproxima mais da mesa e recoloca o pinto sobre ela. Está murcho, tímido, e ele o estica. Sim, é circuncidado. Nem feio nem bonito. Um pau descansando. Uns gramas de carne tubular indiferentes ao que ocorre em torno – inclusive ao fato de descansar sobre mesa e ter por perto uma mão portando faca.
Manacá, que volta a rir mas mantém o ar grave no rosto, inspeciona o próprio pênis.
“Lamento. Vou ter de cortá-lo.”
Ele o diz assim como se alguém o ouvisse, ou mesmo que seu membro flácido pudesse fazê-lo. Libera um suspiro.
“Claro que não é sua culpa. O que fiz fui eu quem fiz. Sua parte? Existir.”
José Manacá volta a inspecionar o pau. Com a ponta da faca, o levanta pela base da glande e olha com curiosidade quase infantil. Chega a inclinar a cabeça para observar algum detalhe, alguma rugosidade inesperada.
“Como não?”, ele arranca a faca de sob o pinto com rapidez inesperada, sem ligar para o risco de arrancar-lhe um pedaço. “Como não?”
O pinto de José Manacá se retrai. O movimento é sutil mas o dono do instrumento o percebe. Não é medo. Está frio. Manacá se inquieta e, pousando a faca sobre a mesa, mede com os dedos em paralelo a extensão do pênis. Aquele gesto, esse gesto, é emprestado. O aprendeu com uma mulher. Os quatro dedos da mão direita rígidos, em continência, usados como régua. Ela dava aulas de piano. Gostava de medir coisas com quatro dedos. Manacá a conheceu por acaso. Ele tinha uma filha com vocação musical. Seis para sete anos. Frente a qualquer som, a menina mudava. Ficava muda, contemplativa, olhinhos congelados. “Graças a Deus”, dizia a esposa de Manacá, aliviada pelo silêncio raro da criança hiperativa.
Manacá perguntou na barbearia, no clube, no restaurante que frequentavam aos sábados. A resposta veio no templo. A mulher do pastor – que José mal conhecia – foi quem disse que sim, sabia de uma excelente professora de música. “Uma tutora”, definiu. “Não se surpreenda com a juventude dela. Será uma experiência única.”
Foi. E não só para a filha de Manacá. José costumava levar de carro a menina às lições, embora poucas quadras distanciassem sua casa do estúdio. Eram aulas de vinte minutos. Ele esperava no automóvel. Quando o verão começou, a professora o convidou para uma limonada e mostrou que a ante-sala era bem mais confortável que lá fora. A aula passou a ser de meia hora. A criança tomou gosto. Logo eram duas e depois três lições por semana. Uns cinquenta minutos cada. A caçula de Manacá aprendia rápido. Fazia as escalas na perfeição possível de sua pequenez, rabiscava as teclas alheia ao mundo. A professora, dispondo refrigerante, biscoitos e bolo ao lado do piano, saía da sala em silêncio: a porta almofadada fechada às costas com cuidado sacramental. Então entregava os seios à gula do pai da menina, deixava-se levar por sua pressa regulada pelo metrônomo clicante indiferente ao lado do sofá – e só afastava o homem de suas coxas e ventre quando as batidas chegavam à exata contagem.
Era de uma precisão que enlevava Manacá. Os quatro dedos em riste se despediam, desde a porta da casa, paralisados no ar como a moça sobre as pernas longas que não gostavam de se esconder – exibiam despudoradamente os poros abertos de sua novidade sob um vestidinho curto que, fora ela outra coisa senão amante, envergonharia José pela falta de sobriedade. Mas não existia motivo para vergonha. Era jovem – como também Manacá – e, ao contrário dele, não tinha em si um espírito velho. Não se interessava em colecionar dinheiro, em ver patrimônio crescer ou em surpreender a dedicada esposa oficial com viagem a lugar de luxo ou jóia no aniversário ou casa nova toda decorada. Essas coisas davam a José a certeza de que fazia o certo. De que era o homem certo para sustentar a vida e o prazer de viver de sua família – as crianças e, antes delas, a esposa. Não só sustentar. Envolver. Assegurar. Prover. Amar. Para José Manacá nunca existiu a possibilidade de amor sem sustento – na verdade, o segundo tinha de vir, necessariamente, antes do primeiro. Era lógico.
Ouvir as marteladas da filha caçula ao piano enquanto se deliciava na professora fazia parte dessa lógica. Desde o primeiro flerte, o primeiro beijo, a sensação das ranhuras dos lábios dela tocando os seus, o cheiro do desejo evaporando das narinas e boca da moça, os seios dela com textura de queijo meiacura: nada disso teria sentido não considerasse o amor pela família e, mais, pela caçula – aquela filha que era mais filha sua que da mãe, como se o tivessem podado um dedo ou orelha e deixado crescer feito planta, até um dia brotar dali a intumescência que se tornaria a menina.
Mas se alguém perguntasse o que de bom ele tirava daquilo, daquelas tardes de sexo cronometrado, Manacá não saberia o que responder. Chegou lá por acaso e por acaso saiu. José deixou de frequentar a professora por conta da igreja – a mesma que o levara às aulas vespertinas de piano, ironicamente, delas o tirou. E nem por isso o ano que passou junto à pianista deixou de ser, à sua maneira, magnífico. Nas primeiras aulas da filha, antes de ter a tutora como consorte ocasional, esperava sem ao certo saber onde estava. Divagava, criava planos, resolvia questões urgentes e inventava outras. Nada desconfortável. Era o tipo de inexistência que costumava cursar quando não fazia algo concreto, algo que o tirasse do chão movediço em que se sentia normalmente, algo como, por exemplo, seduzir a pianista. Mas, curioso, até mesmo a ponte para o mundo que a professora se tornou logo foi tomada pela lama ardilosa, e o que era conexão virou repetição, volta ao pântano onde José, em corpo imóvel e às braçadas em alma, criava planos, resolvia questões ou simplesmente as inventava.
Foi por isso que o templo se mostrou tão atraente?, José se perguntava. Provável que não. O fato é que a caçula carecia de um pouco de religião. E, bem, ele viu na igreja uma possibilidade de negócios. O pastor precisava reformar a construção. Goteiras, a nova ala no fundo, gesso na fachada. O tipo de coisa que a firma de Manacá fazia. Além do que a esposa de José e as crianças estavam deslocadas desde que se mudaram para a cidade. Conheciam quase ninguém. A turma do templo era boa. Nada de radicalismo: havia hora para Deus e hora para o mundo.
Como uma obra chama outra, das reformas no templo aos projetos para fiéis foi um passo. E Manacá gostou da Bíblia, de suas histórias. Basicamente diziam que ele estava certo. Crescer e multiplicar é bem lógico. Com alguma dificuldade mas sem grande tormento ele conseguiu explicar à professora de piano o chamado de Deus. Então a filha de José trocou as lições de teclado pela escolinha dominical, que consumia toda uma tarde por semana no anexo entre o templo e a casa do pastor e de sua esposa.
Os pais costumavam lá largar as crianças e buscá-las no fim da tarde, quando Silvio Santos já não oferecia grande emoção. Manacá porém preferia deixar sua mulher com o carro, em companhia das novas amigas, e permanecer no frescor confortável do templo. Se abandonava quieto, sentado esperando. Patinava no velho conhecido pântano. Tinha ideias, criava planos mirabolantes, alguém passava varrendo o chão depois sumia. Por vez um senhor suado empurrava a alta porta, abandonando o bafo quente do verão na rua, e se ajoelhava a um canto da nave com o rosto comprimido entre as mãos. Alguns tremiam, giravam os olhos, murmuravam coisas. A maior parte ficava ali quieta uns instantes e então voltava à fornalha da vida com o rosto desafogueado. Mas todos repetiam, em determinado instante, a cena das palmas apertando o rosto. Dessa pose de constrição foi que José tirou Glória, esposa do pastor, em uma tarde de domingo. Depois de tempos a observando congelada na postura sublime, Manacá inquietou-se – supôs algum mal súbito, alguma dor, algum estranho desmaio a ter surpreendido em meio à reza.
“Irmã?”, ele pôs a mão no meio das costas dela, entre os ombros.
Manacá errou na hipótese do desmaio mas acertou na da dor – não súbita, era dor dessas guardadas, com suas quinas amordaçadas para que não gritassem nem fizessem gritar quem a ela albergava. José, a partir de então e por longo período, tornou-se devoto: tratou com a diligência que lhe era particular de atenuar a amargura daquela mulher, de mostrar a ela que existiam saídas para as mais ingratas angústias. Buscou com afinco dela tirar a pedra dolorosa que só em um diminuto istmo de tempo – na geografia localizada entre o início do amor e o orgasmo – parecia se diluir, quebrar-se como mica ao sol espalhando luzes. Era porém rocha aquela dor, e logo mais voltava com sua fúria mineral a atormentar Glória como se nunca tivesse sido lascada.
Para Manacá, a amargura de Glória era incompreensível. Abarcava tudo: o marido pastor com suas manias, a vida que ela deixara de viver, as coisas que fazia e que nunca eram boas o bastante, a estupidez da existência sem sentido e a definitiva surdez de Deus eram cacos que, por vez, ela deixava visíveis, mas o núcleo, a fonte da tortura em que Glória vivia jamais chegou à luz – ao menos não à luz que José via. Não que isso impedisse Manacá de exercer seu papel, de amá-la como possível, ainda que fosse extenuante a urgência do gozo tão só para salvá-la por instantes, tirá-la da masmorra e arrancar dela um sorriso que, sim, valia a semana.
A assiduidade de Manacá no templo, porém, passou a chamar atenção. Talvez tanto quanto a facilidade com que desenvolvia negócios na comunidade, munido de seu verbo fácil, sedutor e agora lotado de expressões retiradas da velha Bíblia. Tudo somado, não deveria ter sido surpresa o pastor chamar José a um canto, certa tarde, quando nem atrás do rabo de saia da esposa do ministro ele estava – simplesmente passava pela frente do templo. O coração de Manacá disparou. Tentou uma desculpa mas, frente à insistência do homem de Deus, o seguiu enxugando o bigode de suor. Dentro do prédio, o patriarca sentou a um dos bancos e aguardou que José se pusesse confortável.
“Eu vejo, Manacá”, o pastor por fim disse.
José Manacá puxou o lenço e enxugou novamente o suor.
“É um dom que me emprestou o Senhor”, o ministro continuou. “Vejo dentro das pessoas.”
Manacá inspirou e relaxou. Fosse o que fosse, não podia fazer grande coisa antes que o glérigo jogasse. Só sorriu, olhando nos olhos o pastor. E esperou.
“O que vejo em você é uma potencialidade. Grande, imensa, como Deus gosta de dar a homens que podem usá-la – para o bem ou para o mal, como tudo.”
O pastor falava com irritante lentidão, como se pregando. Após cada frase, aguardava avaliando o efeito. Manacá lembrou de uma das reclamações de Glória e deu a ela toda razão.
“Conversei com o bispo e ele concorda. Não é fácil nem rápido, mas gostaríamos de ter alguém como você mais operante em nossa comunidade.”
“Operante?”, Manacá perguntou.
“Pregando. Não é decisão de uma hora para outra. Pense nessa oportunidade, que não vem de nós mas do Senhor. Aqui só atuamos como instrumento Dele.”
“Está me convidando a ser pastor?”
“Deus está. Sirvo de voz”, o ministro ponderou. “Mas a disposição de seguir ou não o caminho oferecido por Deus é sua. Converse com sua esposa, com os amigos, com Deus. Veja o que dizem e o que seu coração diz. Isso não é negócio. É um chamado”, disse tomando as mãos de José Manacá – as mesmas mãos que, horas antes, se arredondavam nas curvas adúlteras da mulher do pastor.
Manacá saiu de lá tocado. Se sentia indecente. Com nojo de si. Voltou para casa, jantou com a esposa e os filhos e logo pôs os pequenos ao largo – é hora de dormir e não se discute, ralhou com a mais velha, que oferecia resistência. Depois puxou a esposa para o quarto decidido a jogar a toalha: dizer a ela que era um canalha, um estúpido carro puxado por um caralho desmiolado, fraco, falso, um idiota, verme na forma de pinto.
Não o fez.
“Sente aqui, delícia dos meus ais”, disse à mulher indicando a beira da cama. Então a empurrou contra o colchão, a girou sobre o eixo e tirou sua roupa sem cuidado, a galanteando nuca, ombros e costas com lábios e dentes e língua, o rosto dela comprimido nos lençóis, suas ancas e vulva elevadas aos céus com a mesma paixão que levara à esposa do pastor, a paixão que agora buscava satisfazer o desejo de redenção do pecado que Manacá cometera nem só uma nem só dez vezes.
A primeira pessoa a quem José Manacá segredou a proposta do clérigo foi Glória. A esposa do pastor gargalhou. Não é brincadeira, Manacá disse. Você é a única pessoa que me faz rir, ela falou. É sério, Manacá insistiu. As maçãs salientes, elevadas pelo riso, deixaram o rosto dela: então meu marido sabe, Glória considerou, então estamos perdidos. José riu: meu bem, perdido não existe. Ele sabe o que acontece, Glória disse em agudo, como vou voltar para casa? Mas você está em casa, Manacá se divertiu, isso que seu marido pede é diferente, quer crescer na igreja. Que Deus nos perdoe, ela disse sem ouvi-lo, levando as mãos espalmadas ao meio do colo nu. Não não, isso aqui é café pequeno para Deus, é caso que se resolve se acontece, José ponderou. Mas homem que ele percebeu, a esposa do ministro seguiu em agudo. Manacá cuidadosamente se retirou dela embaixo e tomou suas faces entre as mãos: o que seu marido percebeu é que nós estamos fazendo negócios. Nós quem, ela disse, eu e você? Glória, ele se deixou cair na cama, não leve isso a sério.
“Que?”, ela pergunta. “Enlouqueceu?”
“Juro, ele quer que o templo cresça. Sou o fator de crescimento.”
“Pensa em aceitar?”
“Ele sugeriu que eu pedisse opinião das pessoas. Só isso.”
“Só? Então quero só uma resposta”, Glória diz.
“Fica simples. Qual é?”
“Vai largar sua mulher e ficar comigo?”
Foi como terminou o affair com a esposa do ministro. E como, por conta de todas as dúvidas, Manacá decidiu que melhor seria considerar ambas as propostas – a do pastor e a de sua esposa – extremamente lisonjeiras mas igualmente arriscadas. No caso de Glória, mais ainda: no estado de espírito em que ela vivia, com os nervos doentes querendo romper a carne, péssimo resultado era o previsível. E não, Manacá jamais quis abrir mão da família, pela melhor aventura que fosse. Amava a mãe de seus filhos, tinha por ela um tipo de adoração e não a trocaria por ninguém. Isso sempre foi tão claro que espantava a José ouvir de Glória tal absurda ideia.
Por natural que, com essa decisão, não apenas as horas de intercurso com Glória como também a fase evangélica de Manacá e as aulas dominicais de religião de sua filha se tornaram, todas ao mesmo tempo, folha virada. O amor fora de casa minguou. Perdeu-o todo – melhor dizendo, quase todo. Tinha lá a ocasional vizinha maluca, mas de fato ela sempre fora um meteorito a passar no céu, um deixe-me ver se tolero atendê-lo agora de quando em vez. Normalmente ela o tolerava quando a filha de Manacá precisava algum reparo nas roupas, um botão caído ou a manga descosturada do vestidinho. José levava a peça para conserto, e a menina, eterno álibi, para o caso de necessitar alguma prova de medida. O resto era sexo tranquilo enquanto a criança brincava no quintal.
E, certo, havia a irmã da esposa. Não a irmã da esposa do pastor, mas da própria esposa de Manacá. Essa nem devia contar, pois que era não mais que sintoma da fraqueza de José, da fraqueza que ele sentia em seu espírito, de coisa que não se justificava embora mantida. Manacá começara a visitar os lençóis da cunhada há bem mais de dez anos, mas era mulher confusa aquela, um vai e vem cheio de culpa – dela, tenha-se claro – que o enfastiava. Verdade, o crime de abrir o caldeirão e cheirar o cozido lá dentro fora dele. Mas, também verdade, era ela quem reacendia o lume a cada vez que se separavam.
Delícia de mulher, voluptuosa. Seria perfeita não fossem as crises em relação à irmã traída. Como se houvesse traição. “Acha que vou machucar a mulher que amo?”, ele perguntava. Isso não era o bastante para a cunhada. Dizia que Manacá não valia grande coisa. Ameaçava: “vou contar a ela”. José sabia que não passava de retórica, mas as voltas exaustivas à mesma cena tornavam a cunhada mais fonte de irritação do que de prazer. Ele não achava exatamente certo deitar com a irmã da esposa, mas que podia fazer se ela se dispunha com tanta facilidade?
Na realidade, era simples em excesso. A filha mais nova de Manacá ficava lá embaixo, no sobrado confortável, brincando com os primos. No quarto do casal, a brincadeira voava rápida, quase profilática. A cunhada se livrava de José instantaneamente após saltar no negro precipício do prazer e corria ao banheiro, dali despachando ordens.
“Veja como estão as crianças que ouvi um grito”, dizia, ou “põe essa roupa que meu marido hoje chega cedo”, o tubo de perfume já na mão esterilizando o quarto.
“Como é que sua irmã não percebe”, Manacá certo dia disse à cunhada, “que as crianças só gostam de brincar juntas de tempos em tempos?”
“Do que fala, ser?”
“Eu a trazia para brincar quase todo dia. A menina é que quer, dizia. Então passo meses sem vir.”
“Quatro meses”, a cunhada conta.
“Quatro meses longe. E sem explicação a menina quer outra vez brincar com os primos todo dia. Vê que é tão óbvio?”
“Tem nada óbvio. Criança é assim mesmo. Bota essa roupa logo antes que alguma delas resolva subir.”
“Acho que ela sabe.”
“Quem sabe o que?”
“Sua irmã, minha mulher. Ela sabe. Pensa que é idiota? E você não teria vergonha de usar sua filha para acobertar um caso?”
“Que caso? Você tem problema, Zé?”, a cunhada, irritada, entra novamente no banheiro e de lá volta com o spray de desodorizante, empurrando o homem para fora do quarto.
Para fora do quarto ela o empurrava, mas não de suas coxas largas. Isso de certa forma combinava com o funcionamento de José, com seu modo de ser. Em todos seus negócios, Manacá era de uma repetição extraordinária, maníaca. E de uma fidelidade igualmente notável. Teve a cunhada no rol das amantes por 17 anos – exatos, sem tirar nem por. Media pelo aniversário da filha mais nova – a que se acusara de ter usado para acobertar aventuras amorosas. José sabia mas relevava a participação da filha em sua ativa vida sexual – participação indireta, tangente, por certo, e nem assim menos participante.
Ora, ele refletia, era questão de ver pelo lado certo. Jamais pensou em insinuar a filha como aluna de piano ou de religião para ter casos. Uma coisa dessas ofendia sua sensibilidade. Ocorria o contrário – a caçula precisava de um pouco de Deus e aconteceu do clérigo ter aquela bela e disponível mulher. Foi quase o mesmo com o piano e decerto a situação se repetiu nas aulas de tênis e de balé, ou ainda no reforço de matemática, que a menina por demais necessitou. Coincidências. E, por certíssimo, também culpa da mãe, que deixava a filha largada, exigindo de Manacá a excentricidade de funcionar como pai e mãe, eis aí uma crueldade, quando ele podia muito bem estar como os outros maridos jogando bola – ideia odiosa – ou cartas, ou tomando umas cervejas ou espiando as moças na calçada do café. Pois então, só o cenário é outro, lá estão as mulheres o tentando, tentando sua doença que, sim pelo amor de Deus sempre foi uma doença, mas se vê que muda o cenário e a filha não está presente – o restante permanece.
É ou não é?, Manacá perguntou ao psicanalista que um dia, quando bateu nos 40 anos, resolveu consultar. Não recebeu resposta. Perguntou diferente: o que pode haver de errado se todo mundo faz o mesmo? Sem resposta. E que pecado cometo se a casa está em ordem, cuido dos meus muito bem e nem deixo de amar nem de atender minha esposa, que pecado seria esse? O psicólogo mudo. José fez o mesmo por um minuto, olhou o relógio e levantou. Deu duas voltas na salinha. O silêncio o aborreceu. Tirou umas cédulas do bolso, as jogou no colo do terapeuta e saiu. Desistiu de pensar a respeito. Perda de tempo.
Mas agora, bem agora, voltam essas perguntas. Que pecado foi esse? E se nenhum, por que dói? E é dor isso, é dor a confusão? Lá embaixo há barulho de festa. A casa de Manacá, enfeitada, celebra o que ele acaba de saber que é o último aniversário da filha caçula ali. Ela se vai. Contou um instante atrás a José. Pai, vou embora. Pai, bato no teto da casa. Pai, não tem onde caiba aqui o que sou. Dezessete anos. E ele sabe. José Manacá conhece bem o cimento do qual é feito e enxerga a mesma mistura na filha: se ela diz que vai, não fica. Não será seu protesto de pai ou exigência de protetor do clã que a brecará. Lá embaixo o barulho de festa cresce e diminui como as estações se sucedem. Não há penitência nos barulhos da festa. O barulho não se importa com José e não parece perturbado por atrapalhar sua tentativa de, nu no escritório, entender o que se passa. É só a menina indo embora, ele pensa. Mas a faca ao lado do pênis, ambos sobre a mesa, diz alguma coisa diferente.