O corte

É o que se vê. O homem está ali sob um resto de luz que até parece foco de palco. Sem camisa. Abaixo não se enxerga por sobra de sombra. Acima, rosto bem barbeado e uns olhos de fogo claro, pequenos e marotos. Mas está bravo, o homem. Tem dois riscos no meio da testa dividindo as sobrancelhas. A boca é grave. O melhor, porém, é seguir a linha de seu braço. Não esse. É o direito. Ande pela linha muscular que o circunda, o espirala até a mão: uma faca. E como brilha: seu corpo de prata, longilíneo e ameaçador, treme levemente a cada expiração de pulmão ou golfada de coração ou ainda a cada pensamento que escorrega elétrico pelo cérebro do homem.

O homem, que tem nome de árvore, olha a faca entre aterrorizado e maravilhado. José Manacá, é esse seu nome, gira a lâmina ao ar e observa seu delicado fio, esmerilhado a ponto de jóia.

O homem ri. Dá um passo e as nesgas de luz permitem ver que está nu. Dá outro passo, agora para o lado, e se põe junto a uma mesa, pequena e sólida. Com a mão esquerda, instala o pinto sobre a mesa. Ele escorrega. O homem chamado José Manacá se aproxima mais da mesa e recoloca o pinto sobre ela. Está murcho, tímido, e ele o estica. Sim, é circuncidado. Nem feio nem bonito. Um pau descansando. Uns gramas de carne tubular indiferentes ao que ocorre em torno – inclusive ao fato de descansar sobre mesa e ter por perto uma mão portando faca.

Manacá, que volta a rir mas mantém o ar grave no rosto, inspeciona o próprio pênis.

“Lamento. Vou ter de cortá-lo.”

Ele o diz assim como se alguém o ouvisse, ou mesmo que seu membro flácido pudesse fazê-lo. Libera um suspiro.

“Claro que não é sua culpa. O que fiz fui eu quem fiz. Sua parte? Existir.”

José Manacá volta a inspecionar o pau. Com a ponta da faca, o levanta pela base da glande e olha com curiosidade quase infantil. Chega a inclinar a cabeça para observar algum detalhe, alguma rugosidade inesperada.

“Como não?”, ele arranca a faca de sob o pinto com rapidez inesperada, sem ligar para o risco de arrancar-lhe um pedaço. “Como não?”

O pinto de José Manacá se retrai. O movimento é sutil mas o dono do instrumento o percebe. Não é medo. Está frio. Manacá se inquieta e, pousando a faca sobre a mesa, mede com os dedos em paralelo a extensão do pênis. Aquele gesto, esse gesto, é emprestado. O aprendeu com uma mulher. Os quatro dedos da mão direita rígidos, em continência, usados como régua. Ela dava aulas de piano. Gostava de medir coisas com quatro dedos. Manacá a conheceu por acaso. Ele tinha uma filha com vocação musical. Seis para sete anos. Frente a qualquer som, a menina mudava. Ficava muda, contemplativa, olhinhos congelados. “Graças a Deus”, dizia a esposa de Manacá, aliviada pelo silêncio raro da criança hiperativa.

Manacá perguntou na barbearia, no clube, no restaurante que frequentavam aos sábados. A resposta veio no templo. A mulher do pastor – que José mal conhecia – foi quem disse que sim, sabia de uma excelente professora de música. “Uma tutora”, definiu. “Não se surpreenda com a juventude dela. Será uma experiência única.”

Foi. E não só para a filha de Manacá. José costumava levar de carro a menina às lições, embora poucas quadras distanciassem sua casa do estúdio. Eram aulas de vinte minutos. Ele esperava no automóvel. Quando o verão começou, a professora o convidou para uma limonada e mostrou que a ante-sala era bem mais confortável que lá fora. A aula passou a ser de meia hora. A criança tomou gosto. Logo eram duas e depois três lições por semana. Uns cinquenta minutos cada. A caçula de Manacá aprendia rápido. Fazia as escalas na perfeição possível de sua pequenez, rabiscava as teclas alheia ao mundo. A professora, dispondo refrigerante, biscoitos e bolo ao lado do piano, saía da sala em silêncio: a porta almofadada fechada às costas com cuidado sacramental. Então entregava os seios à gula do pai da menina, deixava-se levar por sua pressa regulada pelo metrônomo clicante indiferente ao lado do sofá – e só afastava o homem de suas coxas e ventre quando as batidas chegavam à exata contagem.

Era de uma precisão que enlevava Manacá. Os quatro dedos em riste se despediam, desde a porta da casa, paralisados no ar como a moça sobre as pernas longas que não gostavam de se esconder – exibiam despudoradamente os poros abertos de sua novidade sob um vestidinho curto que, fora ela outra coisa senão amante, envergonharia José pela falta de sobriedade. Mas não existia motivo para vergonha. Era jovem – como também Manacá – e, ao contrário dele, não tinha em si um espírito velho. Não se interessava em colecionar dinheiro, em ver patrimônio crescer ou em surpreender a dedicada esposa oficial com viagem a lugar de luxo ou jóia no aniversário ou casa nova toda decorada. Essas coisas davam a José a certeza de que fazia o certo. De que era o homem certo para sustentar a vida e o prazer de viver de sua família – as crianças e, antes delas, a esposa. Não só sustentar. Envolver. Assegurar. Prover. Amar. Para José Manacá nunca existiu a possibilidade de amor sem sustento – na verdade, o segundo tinha de vir, necessariamente, antes do primeiro. Era lógico.

Ouvir as marteladas da filha caçula ao piano enquanto se deliciava na professora fazia parte dessa lógica. Desde o primeiro flerte, o primeiro beijo, a sensação das ranhuras dos lábios dela tocando os seus, o cheiro do desejo evaporando das narinas e boca da moça, os seios dela com textura de queijo meiacura: nada disso teria sentido não considerasse o amor pela família e, mais, pela caçula – aquela filha que era mais filha sua que da mãe, como se o tivessem podado um dedo ou orelha e deixado crescer feito planta, até um dia brotar dali a intumescência que se tornaria a menina.

Mas se alguém perguntasse o que de bom ele tirava daquilo, daquelas tardes de sexo cronometrado, Manacá não saberia o que responder. Chegou lá por acaso e por acaso saiu. José deixou de frequentar a professora por conta da igreja – a mesma que o levara às aulas vespertinas de piano, ironicamente, delas o tirou. E nem por isso o ano que passou junto à pianista deixou de ser, à sua maneira, magnífico. Nas primeiras aulas da filha, antes de ter a tutora como consorte ocasional, esperava sem ao certo saber onde estava. Divagava, criava planos, resolvia questões urgentes e inventava outras. Nada desconfortável. Era o tipo de inexistência que costumava cursar quando não fazia algo concreto, algo que o tirasse do chão movediço em que se sentia normalmente, algo como, por exemplo, seduzir a pianista. Mas, curioso, até mesmo a ponte para o mundo que a professora se tornou logo foi tomada pela lama  ardilosa, e o que era conexão virou repetição, volta ao pântano onde José, em corpo imóvel e às braçadas em alma, criava planos, resolvia questões ou simplesmente as inventava.

Foi por isso que o templo se mostrou tão atraente?, José se perguntava. Provável que não. O fato é que a caçula carecia de um pouco de religião. E, bem, ele viu na igreja uma possibilidade de negócios. O pastor precisava reformar a construção. Goteiras, a nova ala no fundo, gesso na fachada. O tipo de coisa que a firma de Manacá fazia. Além do que a esposa de José e as crianças estavam deslocadas desde que se mudaram para a cidade. Conheciam quase ninguém. A turma do templo era boa. Nada de radicalismo: havia hora para Deus e hora para o mundo.

Como uma obra chama outra, das reformas no templo aos projetos para fiéis foi um passo. E Manacá gostou da Bíblia, de suas histórias. Basicamente diziam que ele estava certo. Crescer e multiplicar é bem lógico. Com alguma dificuldade mas sem grande tormento ele conseguiu explicar à professora de piano o chamado de Deus. Então a filha de José trocou as lições de teclado pela escolinha dominical, que consumia toda uma tarde por semana no anexo entre o templo e a casa do pastor e de sua esposa.

Os pais costumavam lá largar as crianças e buscá-las no fim da tarde, quando Silvio Santos já não oferecia grande emoção. Manacá porém preferia deixar sua mulher com o carro, em companhia das novas amigas, e permanecer no frescor confortável do templo. Se abandonava quieto, sentado esperando. Patinava no velho conhecido pântano. Tinha ideias, criava planos mirabolantes, alguém passava varrendo o chão depois sumia. Por vez um senhor suado empurrava a alta porta, abandonando o bafo quente do verão na rua, e se ajoelhava a um canto da nave com o rosto comprimido entre as mãos. Alguns tremiam, giravam os olhos, murmuravam coisas. A maior parte ficava ali quieta uns instantes e então voltava à fornalha da vida com o rosto desafogueado. Mas todos repetiam, em determinado instante, a cena das palmas apertando o rosto. Dessa pose de constrição foi que José tirou Glória, esposa do pastor, em uma tarde de domingo. Depois de tempos a observando congelada na postura sublime, Manacá inquietou-se – supôs algum mal súbito, alguma dor, algum estranho desmaio a ter surpreendido em meio à reza.

“Irmã?”, ele pôs a mão no meio das costas dela, entre os ombros.

Manacá errou na hipótese do desmaio mas acertou na da dor – não súbita, era dor dessas guardadas, com suas quinas amordaçadas para que não gritassem nem fizessem gritar quem a ela albergava. José, a partir de então e por longo período, tornou-se devoto: tratou com a diligência que lhe era particular de atenuar a amargura daquela mulher, de mostrar a ela que existiam saídas para as mais ingratas angústias. Buscou com afinco dela tirar a pedra dolorosa que só em um diminuto istmo de tempo – na geografia localizada entre o início do amor e o orgasmo – parecia se diluir, quebrar-se como mica ao sol espalhando luzes. Era porém rocha aquela dor, e logo mais voltava com sua fúria mineral a atormentar Glória como se nunca tivesse sido lascada.

Para Manacá, a amargura de Glória era incompreensível. Abarcava tudo: o marido pastor com suas manias, a vida que ela deixara de viver, as coisas que fazia e que nunca eram boas o bastante, a estupidez da existência sem sentido e a definitiva surdez de Deus eram cacos que, por vez, ela deixava visíveis, mas o núcleo, a fonte da tortura em que Glória vivia jamais chegou à luz – ao menos não à luz que José via. Não que isso impedisse Manacá de exercer seu papel, de amá-la como possível, ainda que fosse extenuante a urgência do gozo tão só para salvá-la por instantes, tirá-la da masmorra e arrancar dela um sorriso que, sim, valia a semana.

A assiduidade de Manacá no templo, porém, passou a chamar atenção. Talvez tanto quanto a facilidade com que desenvolvia negócios na comunidade, munido de seu verbo fácil, sedutor e agora lotado de expressões retiradas da velha Bíblia. Tudo somado, não deveria ter sido surpresa o pastor chamar José a um canto, certa tarde, quando nem atrás do rabo de saia da esposa do ministro ele estava – simplesmente passava pela frente do templo. O coração de Manacá disparou. Tentou uma desculpa mas, frente à insistência do homem de Deus, o seguiu enxugando o bigode de suor. Dentro do prédio, o patriarca sentou a um dos bancos e aguardou que José se pusesse confortável.

“Eu vejo, Manacá”, o pastor por fim disse.

José Manacá puxou o lenço e enxugou novamente o suor.

“É um dom que me emprestou o Senhor”, o ministro continuou. “Vejo dentro das pessoas.”

Manacá inspirou e relaxou. Fosse o que fosse, não podia fazer grande coisa antes que o glérigo jogasse. Só sorriu, olhando nos olhos o pastor. E esperou.

“O que vejo em você é uma potencialidade. Grande, imensa, como Deus gosta de dar a homens que podem usá-la – para o bem ou para o mal, como tudo.”

O pastor falava com irritante lentidão, como se pregando. Após cada frase, aguardava avaliando o efeito. Manacá lembrou de uma das reclamações de Glória e deu a ela toda razão.

“Conversei com o bispo e ele concorda. Não é fácil nem rápido, mas gostaríamos de ter alguém como você mais operante em nossa comunidade.”

“Operante?”, Manacá perguntou.

“Pregando. Não é decisão de uma hora para outra. Pense nessa oportunidade, que não vem de nós mas do Senhor. Aqui só atuamos como instrumento Dele.”

“Está me convidando a ser pastor?”

“Deus está. Sirvo de voz”, o ministro ponderou. “Mas a disposição de seguir ou não o caminho oferecido por Deus é sua. Converse com sua esposa, com os amigos, com Deus. Veja o que dizem e o que seu coração diz. Isso não é negócio. É um chamado”, disse tomando as mãos de José Manacá – as mesmas mãos que, horas antes, se arredondavam nas curvas adúlteras da mulher do pastor.

Manacá saiu de lá tocado. Se sentia indecente. Com nojo de si. Voltou para casa, jantou com a esposa e os filhos e logo pôs os pequenos ao largo – é hora de dormir e não se discute, ralhou com a mais velha, que oferecia resistência. Depois puxou a esposa para o quarto decidido a jogar a toalha: dizer a ela que era um canalha, um estúpido carro puxado por um caralho desmiolado, fraco, falso, um idiota, verme na forma de pinto.

Não o fez.

“Sente aqui, delícia dos meus ais”, disse à mulher indicando a beira da cama. Então a empurrou contra o colchão, a girou sobre o eixo e tirou sua roupa sem cuidado, a galanteando nuca, ombros e costas com lábios e dentes e língua, o rosto dela comprimido nos lençóis, suas ancas e vulva elevadas aos céus com a mesma paixão que levara à esposa do pastor, a paixão que agora buscava satisfazer o desejo de redenção do pecado que Manacá cometera nem só uma nem só dez vezes.

A primeira pessoa a quem José Manacá segredou a proposta do clérigo foi Glória. A esposa do pastor gargalhou. Não é brincadeira, Manacá disse. Você é a única pessoa que me faz rir, ela falou. É sério, Manacá insistiu. As maçãs salientes, elevadas pelo riso, deixaram o rosto dela: então meu marido sabe, Glória considerou, então estamos perdidos. José riu: meu bem, perdido não existe. Ele sabe o que acontece, Glória disse em agudo, como vou voltar para casa? Mas você está em casa, Manacá se divertiu, isso que seu marido pede é diferente, quer crescer na igreja. Que Deus nos perdoe, ela disse sem ouvi-lo, levando as mãos espalmadas ao meio do colo nu. Não não, isso aqui é café pequeno para Deus, é caso que se resolve se acontece, José ponderou. Mas homem que ele percebeu, a esposa do ministro seguiu em agudo. Manacá cuidadosamente se retirou dela embaixo e tomou suas faces entre as mãos: o que seu marido percebeu é que nós estamos fazendo negócios. Nós quem, ela disse, eu e você? Glória, ele se deixou cair na cama, não leve isso a sério.

“Que?”, ela pergunta. “Enlouqueceu?”

“Juro, ele quer que o templo cresça. Sou o fator de crescimento.”

“Pensa em aceitar?”

“Ele sugeriu que eu pedisse opinião das pessoas. Só isso.”

? Então quero uma resposta”, Glória diz.

“Fica simples. Qual é?”

“Vai largar sua mulher e ficar comigo?”

Foi como terminou o affair com a esposa do ministro. E como, por conta de todas as dúvidas, Manacá decidiu que melhor seria considerar ambas as propostas – a do pastor e a de sua esposa – extremamente lisonjeiras mas igualmente arriscadas. No caso de Glória, mais ainda: no estado de espírito em que ela vivia, com os nervos doentes querendo romper a carne, péssimo resultado era o previsível. E não, Manacá jamais quis abrir mão da família, pela melhor aventura que fosse. Amava a mãe de seus filhos, tinha por ela um tipo de adoração e não a trocaria por ninguém. Isso sempre foi tão claro que espantava a José ouvir de Glória tal absurda ideia.

Por natural que, com essa decisão, não apenas as horas de intercurso com Glória como também a fase evangélica de Manacá e as aulas dominicais de religião de sua filha se tornaram, todas ao mesmo tempo, folha virada. O amor fora de casa minguou. Perdeu-o todo – melhor dizendo, quase todo. Tinha lá a ocasional vizinha maluca, mas de fato ela sempre fora um meteorito a passar no céu, um deixe-me ver se tolero atendê-lo agora de quando em vez. Normalmente ela o tolerava quando a filha de Manacá precisava algum reparo nas roupas, um botão caído ou a manga descosturada do vestidinho. José levava a peça para conserto, e a menina, eterno álibi, para o caso de necessitar alguma prova de medida. O resto era sexo tranquilo enquanto a criança brincava no quintal.

E, certo, havia a irmã da esposa. Não a irmã da esposa do pastor, mas da própria esposa de Manacá. Essa nem devia contar, pois que era não mais que sintoma da fraqueza de José, da fraqueza que ele sentia em seu espírito, de coisa que não se justificava embora mantida. Manacá começara a visitar os lençóis da cunhada há bem mais de dez anos, mas era mulher confusa aquela, um vai e vem cheio de culpa – dela, tenha-se claro – que o enfastiava. Verdade, o crime de abrir o caldeirão e cheirar o cozido lá dentro fora dele. Mas, também verdade, era ela quem reacendia o lume a cada vez que se separavam.

Delícia de mulher, voluptuosa. Seria perfeita não fossem as crises em relação à irmã traída. Como se houvesse traição. “Acha que vou machucar a mulher que amo?”, ele perguntava. Isso não era o bastante para a cunhada. Dizia que Manacá não valia grande coisa. Ameaçava: “vou contar a ela”. José sabia que não passava de retórica, mas as voltas exaustivas à mesma cena tornavam a cunhada mais fonte de irritação do que de prazer. Ele não achava exatamente certo deitar com a irmã da esposa, mas que podia fazer se ela se dispunha com tanta facilidade?

Na realidade, era simples em excesso. A filha mais nova de Manacá ficava lá embaixo, no sobrado confortável, brincando com os primos. No quarto do casal, a brincadeira voava rápida, quase profilática. A cunhada se livrava de José instantaneamente após saltar no negro precipício do prazer e corria ao banheiro, dali despachando ordens.

“Veja como estão as crianças que ouvi um grito”, dizia, ou “põe essa roupa que meu marido hoje chega cedo”, o tubo de perfume já na mão esterilizando o quarto.

“Como é que sua irmã não percebe”, Manacá certo dia disse à cunhada, “que as crianças só gostam de brincar juntas de tempos em tempos?”

“Do que fala, ser?”

“Eu a trazia para brincar quase todo dia. A menina é que quer, dizia. Então passo meses sem vir.”

“Quatro meses”, a cunhada conta.

“Quatro meses longe. E sem explicação a menina quer outra vez brincar com os primos todo dia. Vê que é tão óbvio?”

“Tem nada óbvio. Criança é assim mesmo. Bota essa roupa logo antes que alguma delas resolva subir.”

“Acho que ela sabe.”

“Quem sabe o que?”

“Sua irmã, minha mulher. Ela sabe. Pensa que é idiota? E você não teria vergonha de usar sua filha para acobertar um caso?”

“Que caso? Você tem problema, Zé?”, a cunhada, irritada, entra novamente no banheiro e de lá volta com o spray de desodorizante, empurrando o homem para fora do quarto.

Para fora do quarto ela o empurrava, mas não de suas coxas largas. Isso de certa forma combinava com o funcionamento de José, com seu modo de ser. Em todos seus negócios, Manacá era de uma repetição extraordinária, maníaca. E de uma fidelidade igualmente notável. Teve a cunhada no rol das amantes por 17 anos – exatos, sem tirar nem por. Media pelo aniversário da filha mais nova – a que se acusara de ter usado para acobertar aventuras amorosas. José sabia mas relevava a participação da filha em sua ativa vida sexual – participação indireta, tangente, por certo, e nem assim menos participante.

Ora, ele refletia, era questão de ver pelo lado certo. Jamais pensou em insinuar a filha como aluna de piano ou de religião para ter casos. Uma coisa dessas ofendia sua sensibilidade. Ocorria o contrário – a caçula precisava de um pouco de Deus e aconteceu do clérigo ter aquela bela e disponível mulher. Foi quase o mesmo com o piano e decerto a situação se repetiu nas aulas de tênis e de balé, ou ainda no reforço de matemática, que a menina por demais necessitou. Coincidências. E, por certíssimo, também culpa da mãe, que deixava a filha largada, exigindo de Manacá a excentricidade de funcionar como pai e mãe, eis aí uma crueldade, quando ele podia muito bem estar como os outros maridos jogando bola – ideia odiosa – ou cartas, ou tomando umas cervejas ou espiando as moças na calçada do café. Pois então, só o cenário é outro, lá estão as mulheres o tentando, tentando sua doença que, sim pelo amor de Deus sempre foi uma doença, mas se vê que muda o cenário e a filha não está presente – o restante permanece.

É ou não é?, Manacá perguntou ao psicanalista que um dia, quando bateu nos 40 anos, resolveu consultar. Não recebeu resposta. Perguntou diferente: o que pode haver de errado se todo mundo faz o mesmo? Sem resposta. E que pecado cometo se a casa está em ordem, cuido dos meus muito bem e nem deixo de amar nem de atender minha esposa, que pecado seria esse? O psicólogo mudo. José fez o mesmo por um minuto, olhou o relógio e levantou. Deu duas voltas na salinha. O silêncio o aborreceu. Tirou umas cédulas do bolso, as jogou no colo do terapeuta e saiu. Desistiu de pensar a respeito. Perda de tempo.

Mas agora, bem agora, voltam essas perguntas. Que pecado foi esse? E se nenhum, por que dói? E é dor isso, é dor a confusão? Lá embaixo há barulho de festa. A casa de Manacá, enfeitada, celebra o que ele acaba de saber que é o último aniversário da filha caçula ali. Ela se vai. Contou um instante atrás a José. Pai, vou embora. Pai, bato no teto da casa. Pai, não tem onde caiba aqui o que sou. Dezessete anos. E ele sabe. José Manacá conhece bem o cimento do qual é feito e enxerga a mesma mistura na filha: se ela diz que vai, não fica. Não será seu protesto de pai ou exigência de protetor do clã que a brecará. Lá embaixo o barulho de festa cresce e diminui como as estações se sucedem. Não há penitência nos barulhos da festa. O barulho não se importa com José e não parece perturbado por atrapalhar sua tentativa de, nu no escritório, entender o que se passa. É só a menina indo embora, ele pensa. Mas a faca ao lado do pênis, ambos sobre a mesa, diz alguma coisa diferente.

Publicado em contos, Escritos | Etiquetas , , , , , , | 1 Comentário

mulher no espelho

mulher no espelho

 


a maleável doçura dura do metal
é o que olha de seus olhos:
dom da terra, que de terra rescende
relembra se umidece
entristece de certa saudade mineral
que jamais se entende
que não se alcança
da carcaça de carne que a adorna
que não se alcança
nem no espelho em que se mira
dourada áurea ou núbia
na imagem em que enfrenta
a estranheza de sua nata profundeza:
inalcançável veio, mina subterrânea,
depósito calcário, luz clandestina.

ah, mas não vale a pena, não vale o espanto
do reflexo que a reflete a mineralidade:
há sol lá fora, o dia corre sereno
e alguém
se há alguém além de seu alguém
pode dizer bobagens chamá-la de meu bem
olhá-la sem a ver e amá-la
sem nunca perceber que é feita de metal
do mais leve delicado e cortante metal
de substância que a estilhaça toda
a despedaça no meio da noite acordada
no tumulto do trânsito no toalete do restaurante
no espelho do shopping center
ou no meio do amor
morno
que por amor se faz sem de fato se fazer.

e talvez a isso se chame felicidade.

Publicado em Escritos, Ingenuidades, Poesia | Etiquetas , | 2 Comentários

Menina na janela

Menina na janela

 


Corre corre corre, minha filha minha
Fecha a janela com pressa
Que vi um bicho malvado
Querendo por ela a tirar

Não é nada disso, maezinha minha
É só a menina magrinha
E seu padrinho sem roupa
Se aquecendo na fogueira.

Na fogueira em que se aquecem
Queimam coisas sem ter dó
Fecha fecha fecha a janela, ó minha filha minha
Se não a puxam por ela, a comem inteirinha

Olha olha olha, minha maezinha minha
Já lá um o outro come
E tão alto o grito salta
Que me queima a orelha em volta

Não é grito mas é ai, minha filha minha,
Que mata a menina de leve
E o padrinho bem em breve
Voa à fogueira assoprar

E que nó é esse, minha maezinha minha,
Me apertando a barriga, me querendo chorar?

É só medo de destino, minha filha minha,
Coisa que some sozinha
Quando a janela fechar.

(Ingenuidade 2)

Publicado em Escritos, Ingenuidades, Poesia | Etiquetas , | Publicar um comentário

Meninos

Meninos


vai dormindinho o menino, vai, na caixa da bicicleta.
seus olhos correm estrelas, vai, seu pai pedala depressa.
corre corrente, corre, o sonho do inocente.

voa coruja por cima, morcego ao lado passa
vai o menino com sono puxando o pai pra casa

padece se chega ladeira, descansa se ela desce
foge o pai do menino da noite que se entretece:
se não logo chega em casa, a mãe dele entristece

(Ingenuidade 1)

Publicado em Escritos, Ingenuidades | Etiquetas , , | Publicar um comentário

Doce perfume de mangas podres

Doce perfume de mangas podres

Bernardo dormiu depois do almoço e, enquanto acordava, passou algum tempo saboreando aquele estado de semiconsciência em que os ruídos do mundo avançam como patas de gato sobre a região dos sonhos. Foi onde teve o primeiro contato com o berreiro. Levou um susto. Era um matraquear excepcionalmente desagradável, por vezes quebrado por gritos como de macacos. Mas cessou em seguida. Bernardo quase caiu no sono outra vez. Podia escutar a cidade, e se deixou tomar pela calma dos sons conhecidos. Era engano: não passava de um breque: os gritos recomeçaram, e com tal fúria que alguém a cinquenta metros dali poderia ouvi-los perfeitamente.

Deu um pulo sentindo o coração aos trancos. Como naqueles pesadelos da infância. De fato se sentia em um deles. Que diabos era aquilo? Não tinha dormido seus quarenta minutos. Péssimo, levantou praguejando. Abriu a janela. Os gritos ficaram mais fortes e, em seguida, outra vez pararam. Uma brisa suave tornava suportável a tarde de verão. As árvores balançavam os galhos e um perfume adocicado de mangas apodrecendo tomou o quarto. Então a voz esganiçada voltou. Não conseguiu perceber de onde ela partia.

O escarcéu acompanhou Bernardo ao banheiro. Lavou o rosto e escovou os dentes o escutando. E seguiu com ele nos ouvidos até a cozinha. De lá saiu com a xícara grande perfumada de café e entrou no escritório. Bateu a porta a empurrando com o calcanhar e ligou a vitrola. Tinha um disco de Alice Cooper lá. Aumentou o volume: Teenager Lament. Só assim, isolado por uma porta de madeira e outra de música, conseguiu se livrar dos gritos. Depois foi tocando outros discos, todos escolhidos pela massa sonora oferecida, para escapar aos gritos. Na capa de um deles, anotou: Fevereiro. As bestas do apocalipse foram soltas. Uma delas está por perto.

Quando desligou o computador e deixou o escritório, noite, o berreiro cessara. Bernardo o esqueceu até o almoço do dia seguinte: os gritos voltaram.

“O que é isso?”, perguntou à empregada, irritado, ao pegar sua habitual dose formidável de café.

“Brócolis”, ela disse sem parar de mexer na panela.

“Não, esse barulho.”

Ela brecou a colher e levantou os olhos: “a música?”

“Música?”, Bernardo tomou um gole do café. “Parece que estão torturando porcos.”

“Ah”, Dalva disse.

“Não sabe de onde vem?”

“Eu acho que”, ela parou e refletiu, “que não.”

Quando Dalva terminou a frase, Bernardo já saíra. Estava lá fora, no quintal perfumado pelas mangas. Farejava a fonte do som. Tinha quebrado o hábito da soneca após o almoço. Primeira vez em cinco, sete, talvez oito anos. Isso ia acabar com sua tarde, pensava andando pelo gramado. Tinha a xícara de café enroscada no indicador. Os gritos o acompanhavam. E, sim, podia concordar com Dalva. Aquilo seguia alguma métrica musical. Estranha mas – então o telefone tocou. Foi desajeitadamente sacado por Bernardo do grampo em que o mantinha ao cinto. Atendeu tentando proteger o bocal com a mão. Queria evitar que os gritos fossem ouvidos. Podiam ser mal-interpretados. Mas a xícara girou em seu indicador. Deu um banho de café no telefone e, claro, no próprio Bernardo, que a essa altura corria para o escritório tentando entender o que a voz do outro lado falava. Horrível.

A tarde foi mesmo péssima. Perder a dormida depois do almoço acabou com seu planejamento. Dalva bateu à porta e entrou sem esperar quando eram cinco da tarde. Bernardo não havia feito quase nada do que precisava. Cinco horas. Ele irritado, ela de saída. Mas Dalva descobrira a identidade do cantor.

“Que cantor?”, Bernardo perguntou. Baixou o volume do toca-discos. Se arrependeu na hora. “Esse cantor”, balançou a cabeça em direção à porta.

“É filho do casal que mudou em frente”, ela disse.

“Um casal de lobos”, ele disse.

“É um menino. Uns quinze anos. Mas usa fralda.”

“Ah, vá.”

“Não”, Dalva pôs a bandeja com café e biscoitos sobre a mesa. “Acho que são dez filhos.”

“Fraldas?”

“Evangélicos”, ela disse, e por fim Bernardo a olhou, surpreso com a quantidade de informações que coletara.

“E as fraldas?”

“O menino. Ele tem algum problema.”

“Claro que tem!”, Bernardo abriu um sorriso. Girou os olhos para Dalva como se ela tivesse de entender que ele estava sendo espirituoso. Mas se lembrou de seu papel e fechou a cara. “A parte do problema eu percebi.”

Dalva sorriu contida, repetiu que estava de saída e, com o silêncio dele, tomou rumo. Segundos depois Bernardo ouviu o rangido dos gonzos enferrujados do portão. Há anos ouvia o rangido e sempre pensava que devia engraxar os pinos de ferro. Dessa vez só passou por sua cabeça que os pinos guincharam no mesmo tom em que o garoto berrava. Seria possível? Deixou o computador. Foi para o quintal. O nham-nhém-nhum do menino cresceu tanto quanto o cheiro das frutas apodrecendo sob as mangueiras. Bernardo testou o portão. Uma, duas, cinco vezes. Encantador. Exatamente o mesmo tom. Que diabólica coincidência, pensou. Dalva bem que podia estar ali. Ela ia gostar. Quer dizer, do jeito que era curiosa bem que podia gostar.

Da calçada via a casa da frente. Escada em L e varanda alta, bem acima do nível da rua. Uma árvore, a copa dançando à altura da varanda, impedia a visão completa da área. Bernardo podia observar, porém, parte de uma cadeira de rodas.

Dois passos à frente e a ruidosa fonte musical ganha corpo. O garoto é rechonchudo, maçãs do rosto rosadas e olhos caídos. As pálpebras parecem ter sido puxadas até esgarçar e então largadas lá. Espalhadas sobre os olhos. O menino balança o tronco para a frente e para trás. Lento, hipnótico. Os gritos ritmam as flexões. Ou o contrário, tanto faz: para Bernardo, foi como se o berreiro cessasse. Ou melhor, como se som e movimento se abraçassem, um calando o outro. Era de tal modo triste aquilo – o movimento contínuo de um robô industrial e o som sem sentido incorporados a um menino – que Bernardo atravessou a rua e teve de se esforçar para não subir as escadas. Mas que faria se subisse?, pensou. Aquilo era dor, dor e solidão elevadas a grau extremo. Que sabia ele sobre essas coisas?

Do outro lado da rua, em sua casa, o telefone tocou. O esquecera lá. Não se moveu. Paralisado, olhos postos no garoto que agora só se flexionava, boca fechada emitindo um murmúrio grave, baixo. O telefone tocando. O menino sorriu, ou pareceu ter sorrido, a boca bem aberta. Não havia mais murmúrio. Um carro passou e o motorista disse qualquer coisa. Bernardo congelado sobre as pedras da calçada. Tinha a boca aberta como a do menino. A brisa do fim da tarde ganhava corpo. O telefone. A árvore começou a balançar com mais força na frente do garoto. Respiração presa, Bernardo pensou que aquele seria o momento dos gritos de macaco. Os agudos girando na varanda e ganhando o ar. Talvez fosse, não tivesse saído da casa uma mulher encurvada e de óculos. Sem perda de tempo, girou a cadeira de rodas e a empurrou porta adentro. O telefone ainda tocava na casa de Bernardo.

Começou a chover. A rua serena.

Nas tardes seguintes não houve cantoria. Pássaros, caminhões, ecos de cães ladrando e vozes passageiras retomaram seus lugares. Bernardo não mais dormia após o almoço. Encontrou excelentes explicações para a mudança de hábito – o molho muito condimentado, a preocupação com um projeto que se aproximava do fim se de fato estar pronto. Duas da tarde. Mexeu distraidamente o mouse. A tela mostrou o croqui de uma casa. Onde estava o café?

Passou a porta da cozinha, seguiu o corredor e cruzou a sala. Cheiro de mangas amolecidas. Abriu o portão e sorriu o guincho dos gonzos. Nada além do calor sufocante: a rua em silêncio. Deu meia volta. Aquele banco de ferro e ripas, embaixo da mangueira, antes ficava na casa do pai. Não lembrava quando o trouxe. Sentou, abraçado pelo calor e perfume das frutas. Deu por si quando passavam de três da tarde. Uma igreja tocava sinos.

Da porta de vidro da sala, Dalva o olhava. Desconcertada, a bandeja habitual de café nas mãos. Grossas gotas de suor desciam rosto e pescoço de Bernardo. As folhas da árvore balançavam sobre ele. Começou a listar, mentalmente, tudo que tinha de fazer. E dormiu.

Dalva o acordou às cinco. Suado, camisa empapada. Ela tinha de ir. Era quase bela. Bernardo aquiesceu confuso de sono. Acompanhou os passos da moça até o portão. Tão magra, parecia quebradiça. A mão dela subiu ao trinco e parou. Ela virou o rosto só um pouco para trás, mas o bastante para ver o olhar dele, de longe, a seguindo. Bernardo pensou que Dalva voltaria. Mas não. O ruído dos gonzos. O mesmo tom. Onde estaria o menino?

Se deixou olhando as folhas da mangueira, acordando lentamente, e cochilou. Ao abrir os olhos, o mundo era quieto. Bernardo não entendeu imediatamente. 6h31 no relógio de pulso. Costas, braços, pernas, tudo em pandarecos. Mas a mente clara, límpida. Dalva saíra há pouco. Ele tinha a noite toda para recuperar a tarde perdida. Foi alguma coisa com a luz que o despertou completamente. O sol no lugar errado. Olhou outra vez: 6h32. A claridade nas costas. Riu deliciado. Era manhã. Fez as contas coando café: 15 horas dormindo no quintal.

Sentou ao computador. Se sentia ótimo. Seu humor ficou ainda melhor quando a voz esganiçada do garoto ecoou pela casa. Era horrivelmente triste. E, ao mesmo tempo, tão expressiva e melódica quanto… quanto o que? Mozart, talvez Mozart. Uma daquelas peças da infância do gênio. Não, claro que não era isso. Mas, e daí? Com o passar dos dias Bernardo se acostumou a substituir a soneca da tarde por umas tantas furtivas visitas ao quintal. Observava o garoto desde o portão, dois passos além. Não pensava mais em engraxar os gonzos. Os passeios ao sol faziam bem. O calor o relaxava. Rosto e braços ganharam cor. E o humor. Melhor, bem melhor. Dalva até conversava frivolidades com ele. Magra que dava pena. Antes ela não tinha coragem. Achava que ele era um bicho, ele sempre soube. Bernardo se pegava observando a moça, analisando o que ela dizia. Não era feia. Tinha uns olhos tristes profundos. O cabelinho fino. Às vezes uma mecha caía sobre o rosto e se esquecia ali, fazendo sombras. E tão magrinha. Mas balançava toda ao andar. Um gingado macio, calmo. Gostoso de ver.

E Bernardo no quintal. Ouvia, pensava. Tinha vontade de fazer qualquer coisa. Abraçar o menino. Dar um longo passeio com ele. Como se isso, seu interesse pelo garoto, contivesse a cura – pudesse impedir as flexões, o balanço, os gritos tão magoados. Gritos: Dalva dizia música. Lamento seria mais apropriado. Era melancólico. Como a magreza dela. Eram pobres. Dalva também, assim como a família do menino. Planejou mas não ousou oferecer ajuda. Ele ponderava: ser pobre já é humilhante. Não preciso tornar isso pior demonstrando que sei.

Do portão, tomado pelo cheiro das mangas, descobriu que ritmo e entonação do garoto mudavam com os ventos. Tinham sobriedade de oratórios em latim se brisas. Rajadas curtas significavam quase gritos. Ventanias, aquele som de macaco. O ritmo, impressionante. Como se existisse um maestro, um metrônomo. Talvez apenas seguisse o próprio coração, e este acompanhasse o ar em movimento.

No final do verão vieram as chuvas grossas. A água martelava sincopadamente alguma calha ao lado da janela do escritório. Bernardo intuía o lamento, o filtrava da bateria hipnótica da chuva. Nos intervalos de estiagem ia ao quintal. Os gonzos lubrificados pela água nada diziam. O vento passava pela copa agitada da árvore à frente do menino. Ele, olhos brilhantes mas sem foco, respondia. Como se viesse por toda a vida construindo a melodia. Nota a nota descobertas e cantadas. Um diário musical – e sombrio como sua vida, Bernardo pensava.

Foi em uma dessas tardes chuvosas. Só garoava, quase neblina. Bernardo, a caneca de café presa ao dedo, conversava com Dalva na cozinha. Foi ela quem escutou antes. Barulho esquisito, disse. Um silvo agudo, como de metais em atrito, lutando por algo ou contra algo. Ele vinha, o som riscado, lá dos lados do garoto. Do mesmo lugar onde nascia a cantoria. Durou algum tempo, depois parou. Continuaram conversando. Era bem melhor do que ir investigar. Dalva dizia coisas que o deixavam encantado – às vezes pela inocência, outras pelo brilho. E, quando sorria, Bernardo via chispas de luz saindo de seus olhos. Consertava a mecha teimosa do cabelo. Ele quase pedia que a deixasse ali, fazendo sombras, desenhando um mistério em seu rosto.

Dalva mais tarde surgiu no escritório com a informação. O barulho metálico pode ter sido da motosserra. Derrubaram a árvore. A que balançava na frente do garoto. Tinha cupins.

Agora, sem a árvore, Bernardo tem visão perfeita do garoto fazendo flexões em sua cadeira de rodas. E, verdade, até tem ventado bastante. Mas o menino não canta. Nunca mais o fez. Nem os murmúrios, nem os gritos de macaco. Seus olhos embaçados olham o nada. A brisa passa lisa, sem turbulência, pela varanda onde ele entardece em sequências de quietas abdominais que não o tornam nem mais magro nem mais feliz. A música se foi.

“Não era o vento”, às vezes Dalva diz, puxando Bernardo pela mão, do portão onde ele teima ficar, para o escritório.

Bernardo gosta da mão dela. Lembra a textura de frutas.

Publicado em contos, Escritos, Long Playing | Etiquetas , , , , | 6 Comentários

Maria

Maria

Aquela mulher que ali se vê chama Maria. O nome vem de qualquer intercorrência histórica – talvez tenha tido pai ou mãe religiosos, cristãos de domingo benvestidos no templo do senhor, ou mãe e pai de pouca imaginação que à simplicidade do Maria fácil se renderam, talvez ainda nem um nem outro que isso de nomes de bebês se lhes dá à veneta, quase vale dizer o nome se faz ao olhar da mãe que observa o ser enrugado a abandonar seus interiores e diz por que não Maria, e pronto, lá se batiza ou nem se verte água mas o nome gruda ao ser que vem se juntar a nós outros, fica assim como que parte dele, de forma que quando se olha ao ser daí em diante é como se uma voz dissesse essa é Maria e pronto, não se discute, fica inútil futricar os porquês de dedo chamar dedo e não zolo ou outro som que se queira, por mais que zolo possa para algum melhor indicar a textura e a serventia e o design do dedo. E se por certo chama-se Maria essa mulher, igualmente há de ter outro nome que a defina e a substitua das outras Marias paridas e viventes no mundo, que as há às mancheias. Isso embora essa não seja Maria qualquer, mesmo porque caso fosse nem teria sentido vê-la descrita em letra escrita, em letras de forma que por decorrência são formais e tratam dessa forma de assunto de seriedade, mas o fato de ser uma Maria singular, especial talvez, ao contrário de permitir que não tenha um segundo nome mais ainda a obriga a tê-lo, a valer-se dele como passaporte da diferença.

Ocorre que essa Maria, nascida sabe-se lá onde, como e de que mãe, perdeu-se de seu sobrenome, o deixou em algum balcão de pedra ou mesa de fórmica, em algum abraço de êxtase que pela manhã nem mais recordava, em qualquer ângulo de corpo ou copo, ficou o nome esquecido sobre a tampa do criado mudo e aquela mulher que sob a lua entrara ao quarto dotada de nome e sobrenome sai com o sol picando os olhos e sem a metade que a ligava a sua linhagem, a antepassados porventura vindos de centenárias peregrinações por terras hoje escondidas sob o mar, no estio da caminhada se buscando em frenesis sensuais para gerar gente que geraria outras gentes que gerariam por fim alguém perspicaz a ponto de, uma bela noite perdida nos séculos do passado, dizer pronto, estou pronto, agora vou a fornicar e com isso me derreto de gozo mas ainda mais importante com isso intercedo a favor de uma Maria que nasce carregando meu nome e gen daqui a mil anos, e eis aí porque temos de fornicar hoje, mulher, eis que o futuro depende de suas pernas abertas e de alguma colaboração do meu lado, então se adentre, marido, teria de dizer a mulher, e nem telefone nem barulho de bicho ou campainha traiçoeira poderiam atrapalhar o intercurso de amor ou de mero prazer pois que se qualquer coisa desse errado nem existiria hoje a Maria, e felizmente tudo funcionou a contento, muito embora o resultado, a se ver o que se vê olhando Maria, quem sabe não satisfizesse o casal de avós milenares, não só por ter ela perdido o sobrenome que queriam manter vivo como também por seu atual estado sem graça, de ruína, como fosse pedra acinzentada cinzelada a golpes de tragos, o álcool a destilando os traços até se tornarem riscos sórdidos, duros e esquecidos de algum dia terem tido nuances e arredondados, esquecidos de seu colo ter encantado um homem e o feito se sentir nos jardins do rei Salomão ao deitar-se sobre Maria e sussurrar minha amada, tuas ancas são como sonhos de padaria e teu ventre o mais nobre confeito coroa, tu és a rainha com que sonha o minarete deste teu servo e por ti me mato na mais infeliz guerra sem causa se teus prazeres me concedes, não não não, dessas palavras já não se lembra qualquer contorno da pobre Maria, sua pele seca talvez hoje se intumesça mas por arte do trago não do açoite do amor, isso logo se observa nas vestes sujas, nas garras pintadas em rosa descorado e na voz gasta com que explica, sem pesar nem maior emoção, ter uma filha de bom corte, coxas largas como sonho, peitos de rola prontos a satisfazer homem ou mesmo outra cria, experimentada na cama que decerto não ofereceria moça sem teste, uma filha única que tem e portanto que lhe é cara, e se a quer vender nesses seus 14 ou seriam 15 anos é porque já cresceu o que tinha de crescer e não pegou marido nem amante, começa a ser peso de difícil andadura essa menina, Maria como mãe bem sabe que mais dia menos dia a garota se emprenha por falta de cuidado ou vontade do destino, bem sabe quanto é distraída a menina, ainda mais que já cansou de levá-la a homem de toda qualidade mas a largam cedo com uns trocos e de troco não se vive, e é assim que essa Maria, tão de longe esperada por gentes que se esquece os nomes, faz a oferta sem rodeios e espera o resultado, a ver se seu discurso sincero seduz a quem seja no armazém, já que não é a algum que fala mas a todos ali à roda, a quem quiser ouvir e se dispor a perguntar preço, condição de entrega, se há garantia e tudo que se espera de um negócio bem feito, algum ali do bilhar pergunta onde anda a prenda e Maria se sai lépida, cala a boca que não ofereço minha cria a cachorro, o armazém gargalha todo que se estremece e o homem pede desculpa, puxa um copo que cai ao chão, espatifa os vidros de que é feito, a gargalhada sobe outra vez em marola forte de maré vazante e umas vozes buscam do homem a hombridade e o espicaçam por ter vertido pinga e cálice quem sabe por medo da resposta dura de Maria, seu Antonio me dê outro com urgência que esse se foi ao santo ou à santa, diz o homem e já logo cata da mão de seu Antonio o copo quase a transbordar e o eleva acima da cabeça, saúda seja o que for, toma meio gole e leva o restante a Maria, essa vai em homenagem a essa mulher que tem colhão, o bar gargalha, a mão de Maria voa non-stop e pega o copinho duro sem pressa e sem dúvida, o transparente da borda do copo some por sua boca em que resta um tanto de batom mas só nos cantos, nas comissuras, e Maria levanta os olhos e sorri, dentes brancos manchados de alguma tinta marrom nas extremidades todas, como sombras, não tem ninguém interessado, ela pergunta, nem pensem que é de graça porque não é mesmo, essa menina é valiosa, é meu tesouro, pari bem parida e cuidei até aqui como princesa, e onde anda essa princesa agora, quer saber outra voz de homem, e só de homem é voz que se ouve no armazém a essa hora da noite porque não há muita frequência feminina, Maria é honrosa exceção contumaz, quem é que quer saber, Maria procura o dono da voz e ele é seu Antonio, dono do armazém, da venda como se diz aqui, por isso dessa feita não houve gargalhada que a turba o respeita por idade e, que se há de fazer, por ser o homem que serve o que se bebe, Maria o olha com estranheza, dá um passo, cambaleia outro, desiste de andar e toma ares de retidão ao responder que a filha está em casa, a essa hora da noite, que é o lugar certo para uma garota de bons costumes e educação fina, alguém ri mas seu Antonio leva os olhos até o risonho e o riso morre, um silêncio toma o armazém, pois se está em casa está bem que anda perigoso por aqui, diz seu Antonio, e o senhor não gostava de uma ajudante que acompanhasse o senhor que é viúvo, Maria pergunta, não careço nem costumo comprar gente, seu Antonio fala, mas como o armazém segue quieto e seu Antonio sabe do que vive e de onde vem seu sustento logo engata outra frase, diz isso até que podia ser bom quando eu era mais moço, e é o bastante para a gargalhada ecoar outra vez e a bola de sinuca rolar macia em seu tapete verde, ninguém quer saber o preço, pergunta Maria, o homem que ofereceu a pinga a ela se aproxima, não pergunta mas tem a questão pendurada nos olhos, menos para você, Maria diz, não vendo, não faço negócio com cachorro, mas minha pinga aceita, pinga não é negócio é só oferta de amigo, e que amigo sou que não posso ter a guria, é amigo e cão, Maria mostra os dentes, o homem vai dizer alguma coisa mas um confrade o puxa de volta aos tacos de bilhar, oferto a menina a qualquer um menos a esse um, Maria agora grita, seu Antonio a olha e pergunta se acha certo vender uma filha, eu quero saber o preço, diz outra voz, de um rapaz nem tão novo nem tão velho que se encontrava desde a chegada de Maria encostado à pedra do balcão, sozinho bebericando uma cerveja que parece não se acabar, uns 30 anos e a pele esticada de sol que se costuma ter na região, pele de um liso brilhante que com o tempo vai se cumprir em destino de rugas, cabelo preto bem curto e um olhar quase tímido, é quem faz a pergunta sem se mover, os homens do armazém não prestam atenção, já se riram da piada da noite e têm outros interesses, não querem saber dos absurdos de Maria que, é usual, amanhã terá outra coisa a vender ou trocar por um punhado de amendoim torrado e uns copos, coisa que ela só não faz nos começos de mês quando recebe a pensão do falecido e se diverte pagando em dinheiro o que bebe, e o senhor faz o que, Maria pergunta ao desconhecido que quis saber o preço, cuido de sítio, ele diz, tem casa ou mora com a criação, não sou homem de deitar com bicho criado, então tem casa, a senhora quer vender a menina ou quer saber da minha vida, os dois que não vou entregar barato essa cria que me custou a vida, tenho casa com luz e água e telefone e televisão, tem dinheiro também, o que dá para o sustento tenho, e quer saber o preço da menina sem conhecer, de forma alguma decerto conheço sua filha que anda com a senhora e sempre vejo as duas, vai bem assim e o preço é duzentos, a senhora me desculpe mas faço outra oferta, ih meu filho essa não cola que é conversa de pobre não aceito menos, meu assunto não é barganha eu quero é casar com ela, Maria o olha sem entender, até como se não mais o enxergasse embora não tire o olhar do moço, que radariza com o cuidado que consegue ter em seu estado de álcool, puxa do maço do moço um cigarro e o acende, o faz sem tirar os olhos dele, suga com força a fumaça e infla o rosto ao soltar uma nuvem no rosto dele, me paga um vermute, o moço não abre a boca só vira a cabeça para seu Antonio que, do outro lado da pedra do balcão, escolhe a garrafa e serve, Maria toma um gole e ri, não entendi o que o senhor quer, Maria diz, frisando o senhor, é o que eu disse quero casar com ela não comprar a menina, o senhor sabe o que quer dizer casar, sei que já casei e tenho filho que cuido e mora comigo mas ando sozinho e a menina sua filha é de meu interesse, o senhor me diz que não quer pagar, Maria o interrompe, digo é que quero casar, venha comigo um tanto, Maria cambaleia em direção à porta da rua do armazém e o rapaz a segue, lá fora longe dos olhos e ouvidos do povo do armazém Maria o pega pela mão e indica com o queixo um canto ao lado onde há um banco de madeira sombreado por um pé de dama da noite, e no banco, recostada e meio dormindo está a filha de Maria, mas a senhora disse que ela estava em casa, o rapaz olha embaraçado para Maria, eu falo o que preciso falar e vá lá conversar com ela depois nos acertamos, a senhora desculpe mas não quero comprar quero casar já disse, vá lá e depois se vê, Maria solta a mão do moço e o empurra em direção à filha, que o olha desconfiada, tem o mesmo olhar de desconfiança de Maria só que leve, como que perdido do mundo, e é bonito esse olhar no rosto que guarda uma lembrança de criança e já umas tintas de mulher, um rosto de calma e movimento lento, gostoso de se olhar e prometoso de perfumes de madeira verde úmida sob o cabelo todo cacheado, quer me comprar, você estava ouvindo a conversa, então quer me comprar, eu disse que caso com você, é igual o mesmo, de forma alguma que é, você gosta de me olhar que sei, gosto não escondo, também não acho ruim ir com você, aceita casar comigo, aceito namoro se ela deixar, e como não ia deixar, depende de como ela anda no dia para deixar ou não, falo com ela e acerto isso, o moço agora se aproximou o bastante para ver uma longa cicatriz abaixo de uma das orelhas da garota, avançando por sob os cabelos, que foi isso, conto quando for namoro, vai ser logo, então conto quando for casamento, se me aceita depois do namoro vai também ser logo, é o que quero ver, pode confiar, ele diz, e a menina, que como a mãe tem por nome Maria, entende que vai ouvir essa mesma frase, pode confiar, muitas vezes, mas tantas vezes que um dia nem precisará ouvi-la para saber que foi dita, sendo o bastante para escutá-la observar um qualquer movimento de uns músculos no rosto do moço que será seu namorado e depois marido e depois ex-marido, e é por isso que, enquanto ele dá as costas para voltar ao armazém e negociar com a Maria mãe, os olhos da Maria filha se enchem de lágrimas de pesar pelo futuro, quando ela o deixará com dois outros filhos, um deles a terceira Mariazinha, em troca de acusar o marido de tê-la comprado e em troca de seguir pelo mundo com outro sujeito que mais lembra os homens que ali agora ao lado da mãe a cortejam pagando com um trago, um gracejo, uma atenção qualquer vagabunda, e é só por isso que os olhos da Maria filha se embaçam de água e que ela respira fundo, tão fundo quanto pode, enquanto espera que o futuro namorado venha com a resposta da mãe e a despose e por fim cumpra o destino.

Publicado em contos, Escritos | Etiquetas , , , , , , | 19 Comentários

O Dom da Invisibilidade Cap 7

(quer ler os anteriores? Eis: Capítulo 1Capítulo 2Capítulo 3Capítulo 4Capítulo 5Capítulo 6)

Capítulo 7

E lá se manda Onofre Dei para a cozinha. Não parece ser ato que se faça, mas ele é peça da casa. Aqui é, como Bandeira, amigo de rainha e rei. Tudo pode etc. Veja como cruza o limiar mágico, o portal da caverna dos cozimentos, sem qualquer cerimônia: simplesmente entra, como fosse mera porta de vai-e-vem, dessas de mola movida, o que sem dúvida é, porém sem o mera. Não há nada de mera ali. Não entraria assim a mais iluminada sacerdotisa nos vapores de Delfos, e ele o faz talvez até por desconhecer a gravidade de sua obra e, assim, portanto, sendo pelos espíritos da cozinha perdoado. Isso de fato é curioso: por que se intui os seres superiores e invisíveis perdoarem a feitos de inocentes quando, na palpável realidade da vida, a ninguém e nenhum nada é perdoado pela natureza? Tolice, claro, questão sem nexo. Estamos é mordidos de inveja por Dei ter avançado onde gostaríamos de estar – e mais ainda considerando lá a presença de Yasmin em sua máxima potência, pelo que se diz, no auge do reino em que reina.

Que haverá ali, que surpresas, que belos artefatos e supinas moças? De que cores serão seus pelos e unhas, que sutis ou grosseiros panos usarão sobre os corpos? Serão belas ninfas ou inexpressivas transeuntes da rua, quase transparentes por suas figuras comuníssimas? Interessante que não se as tenha visto nenhuma delas aqui ao ar livre, exceto uma em momento fugaz no cair da tarde, mas então lá estávamos preocupados em entender quem era o cavalheiro que observávamos – logo se descobriu ser Giuseppe – e por descuido nela não nos detivemos. Agora, curioso, não sobra na memória sequer um traço da personagem que vimos (e por certo a vimos), como se tivesse sido uma sombra ou mais uma das invisibilidades que vivem a nos bulir, normalmente sem que percebamos.

Está um calor dos infernos aqui. Terão algum tipo de arrefecimento na cozinha? Íamos quase a considerar que a resposta viria com o radialista, quando dali retornar – se vem pingando, o quente de lá é maior que o de cá. Mas Dei pinga o tempo todo. A informação seria inútil. Estamos a ficar ansiosos, é o que parece? Sim. Não, não, é só o vinho, o abafado, o fato de estarmos quase cansados de não saber o que ocorre com Giuseppe, ele que vimos correndo seminu para a avenida e dela sumindo nos escuros da noite, quando, em verdade, deveria estar convalescendo no hospital ou, se morto, estar quieto na laje do morgue. Bem confuso tudo isso. E aí vem, com um punhado de tampas de garrafa chacoalhando nas mãozinhas bem desenhadas, a linda Eneida. Entra por sob as mesas, passa embaixo de cadeiras, vem vasculhando o chão e recuperando as tampinhas de metal, as balançando como chocalho ou pandeiro, e cantando uma musiquinha infantil – mas o que ela canta não combina em nada com a melodia:

Pois se há um jeito

Se há um jeito

Haverá de surgir

Há de surgir

Bem no formato

No formato

Mais que perfeito

Escutou também? Que raios de canção infantil é essa? Deve lá de ser coisa de Piaget e seus tijolos, por certo, que isso em nossos ouvidos quase nos faz corar – se fosse possível hoje em dia um ser corar – dado o absurdo desse encadeamento de palavras. Criança que se preza deve cantar casos de cachorrinhos latindo e ovelhinhas balindo no fundo do quintal, se tanto, nada dessas temerárias construções que, santo deus!, parecem tiradas de filme de horror. Deve ser o calor, a vozeada do bar, que ela certamente não canta o que ouvimos. O lamentável é que a criança segue sem tropeço na mesma canção, e nos chega perto o bastante para alguém mais informado das covas ouvitórias afirmar que o faz afinadinha, o tom em lá menor, não que faça diferença mas é em lá menor que a danada nos passa ao lado da mesa e prossegue até as bordas do precipício da cozinha, ali há manadas de tampinhas que agora se juntam na sacolinha feita em dobra do vestido na altura do ventre, e a música segue. É uma lição a aprender: há também invisíveis sonoros, o que por pouco não escapava a nossa busca. Da mesma forma que as orlas das coisas olháveis esmaecem quando não as prestamos atenção, também os sons, que são outro tipo de coisa visualizável, podem fazê-lo. Pois a casa se encontra no auge da balbúrdia, os nativos todos excitados com a premente chegada da carne enterrinada em molho e temperos, e os garçons berrando ordens uns aos outros e ainda aumentando o volume da música das caixas acústicas sorrateiramente espalhadas por todo o canto, tudo isso são ruídos a não querer mais, e no entanto eles não existem para nossa percepção que se ajustou a certo único ruído afinado em lá menor, pondo tudo o demais em suspensão silenciosa, como a que dizem precede os graves momentos derivados de acidentes e coisas assim, a exemplo do ocorrido com Giuseppe quando o carro capotou. Tira a poesia da imagem, claro: nesse caso, ele não teria ouvido Vesselina Kasarova entoando Mozart enquanto o horizonte rolava calmamente a sua frente, destruindo o auto que o levava e trincando e depois quebrando em cacos seus ossos, não do auto mas dele, Giuseppe, e a nós agradaria muitíssimo mais que sua destruição, se inevitável, se fizesse a som vivo e bonito, não em silêncio subterrâneo aquático, e tudo indica que foi no líquido abafado a frequência experimentada por ele.

Graças a deus o radialista sai do quarto de cozinha, que ele nos tira dessa impressão triste de fado – já se usou essa comparação aqui a algum canto, parece que o tom melancólico nos pega por vezes. E vem atrás de Dei, maravilha dos olhos e das sensações, a núbia Yasmin envolta em miasmas de sensualidade, como se os evaporasse, como se composta deles, e por certo deles é composta caso contrário não os evolaria, anda lindamente apesar de vestida em dor, e enquanto Onofre Dei vai reto e passa pela menina que colhe tampas de garrafa a mulher delicadamente se inclina e pega ao colo Eneida, ah, o momento único do encontro do mesmo com o mesmo, como se o filho pródigo retornasse ao regaço caseiro sem nem avisar sua chegada e ali simplesmente se pusesse ao pé de quem ama e de quem o ama e se intrincasse naquilo em que por direito é intrincável, e é o belo que ao belo retorna quando as duas juntas, uma aos braços da outra, seguem sobre os pés de uma e o desejo de ambas passeando com os cachos dos cabelos misturados e os rostos colados e algo de perfeito as envolvendo em seu caminho lento até a mesa de Esplendorosa e do médico Granel, onde a pequena apeia ao colo da mãe e pronto – a magia se desfaz, embora outra magia se construa no mesmo instante em que Esplendorosa a beija e se interessa pelas tampas que a menina espalha na mesa.

Dei se perdeu em lugar que não vemos. Yasmin, após entregar Eneida, senta ao lado do casal. Ela encara Granel com um sorriso tão autêntico quanto possa ser um sorriso. Que faz aqui?, (ela não larga o sorriso mas é como se quisesse jogá-lo longe), é seu amigo morrendo e parece que nada acontece, Não é isso não é isso, É o que então? o que o faz não se mover nem quando seu único amigo morre?, Quem diz que é único?, Eu digo e sei o que digo e você sabe também, Não é o único, Quer se fazer de idiota ou o que? porra, por que está aqui e não no hospital, me fale, me convença de que ele está certo quando o trata como alguém que merece respeito, Também estou morrendo e, você vê, não há ninguém me velando, Morrendo qualquer um de nós está, porra, mas não brinco de filosofia, Nem eu, Nem você? que bosta de amigo é? tem ideia de como ele está? É provável que eu morra antes dele, a aids me come o miolo com mais velocidade que as hemorragias dele e nem me há solução que a ele existe, Que se foda sua morte rápida se sua vida se limita a ficar parado olhando, Yasmin diz, e o sorriso que vinha mantendo se desfaz em avalanche silenciosa, pois o que disse o fez em voz baixa e bem contida a ponto de não interferir na conversa sobre tampinhas de garrafa que Eneida e Esplendorosa mantêm a poucos centímetros, de maneira que só a ouvimos pelas graças de nossos poderes especiais nesse bar adquiridos, ou só aqui percebidos, mas eis que o médico e a bela seguem a falar e agora Granel está inquieto, se mexe muito na cadeira, faz menção de levantar e permanece sentando, a energia do movimento o elevando e ele se ficando, uma tensão que se instala no médico e o faz construir no rosto um trejeito de choro infantil, mas o choro não acontece e se soma ao irrealizado movimento de fugir, a comparação razoável seria com águas de tempestades entrando em alvoroço no falso remanso de um dique, este prestes a romper mas semelhando a inalterável, Granel balança a cabeça com vigor, leva as mãos ao rosto e as esfrega  como se quisesse esmagar os olhos para nunca mais olhar nada além de seu próprio escuro, mas quando Yasmin levanta ele também o faz e pergunta por que ela está ali e se acha isso justo, por que Francisco continua ali e se também a ele as perguntas acusatórias de Yasmin se aplicam, e Yasmin tem agora um sorriso de nojo e com ele diz, o escutamos tão límpido que talvez o povo do bar todo o ouça, que tanto ela quanto Francisco ficam por ter sido pedido por Giuseppe, e então ela dá as costas a Granel, à encantadora Eneida e a Esplendorosa, abre sorriso de primavera e rola entre as mesas, entre as pessoas e a agitação barulhenta com o semblante tomado em brilhos que podem ser de raiva ou lágrimas, mas de um ou de outro sendo não a impedem de corrigir a postura inadequada de um garçom que serve pelo lado esquerdo do cliente, fazer piada com outro habitué sobre o regime da esposa e, mais a frente, dizer à porta da cozinha, com postura marcial, as duas únicas palavras que a freguesia quer ouvir: “pode soltar”.

Chega a ser impiedoso essa mulher com olhos em água, circulando sem que notem sua tristeza e tendo de tomar os lugares que o hoje fraco maître Francisco não ocupa e ainda as lacunas de relações públicas que por direito a Giuseppe competiam. Não que ela demonstre a tristeza, isso de demonstrar trata-se mais de nossa observação colocando pesos em suas costas, belas costas que o vestido desnuda pela metade ou talvez um-terço.

Mas nem ao radialista Dei as atribulações de Yasmin parecem justas. Vem ele dizendo que pessoa com tal histórico de aflições bem poderia se poupar de fazer o que não quer, e ela não quer fazer o que faz aqui, mas estou é inventando piada porque Yasmin não é mulher de considerar o ruim como ruim e, se bem notam, tira prazer do que pratica, chora só com metade do rosto e seu choro contém paciências que a mim me escapam, de modos que cada um pode olhá-la pelo lado que interessa ao olhar, e não digo novidade se contar que quase todos só a observam pela metade feliz por fazer algo bom, algo que gosta e que é o momento dela bem agora, sem pensar se seu objeto de amor morre no futuro ou se havia morrido até antes de bater o carro, e isso é um excelente motivo de comemoração já que, assim, ela nos informa que viver não depende da vida, dessas externalidades que se ensina ser vida, embora claro devemos prestar atenção se há falta de vinho à mesa mesmo com ela pregando que não será o vinho a nos redimir e tampouco o cabrito, que lá vêm as terrinas e fumegam de um jeito que não resta alternativa senão se deixar levar por elas, cumprir nosso papel e deixar que o do cabrito se cumpra. Verdadeiramente – Onofre Dei senta e engrena com cuidado de gesto estudado o guardanapo à moda de babador –, verdadeiramente o que importa é observar e não se importar.

“Não se importar?”, pergunta o camaleão – a leitora-leitor, a paráfrase de Giuseppe encarnada, como se quis ao início deste relato apenas como experiência líterometafísica ou qualquer outro subterfúgio semelhante –, pois vem a pergunta com irritação e a irritação prossegue nos olhos do ser mutante, presos em Dei, “quer dizer que se põe no lugar de francoatirador que recusa o gatilho? Deixa que o injusto passe à frente sem mover nada além dos olhos? Fosse o que diz levado em conta há apenas uns anos e o senhor estaria, desculpe mas estaria, pendurado a uma fogueira na Espanha ou fervendo em algum tanque de Treblinka!”

“Ah, não tenha dúvida”, Onofre Dei termina de ajustar o guardanapo e estica o braço para preencher a taça do convidado, “e certamente hoje em dia viveria situação ainda pior se tivesse resolvido nascer mais a leste ou mais a oeste, em um desses lugares onde gente como eu continua não valendo grande coisa. Mas, aqui onde estou, me há o conforto de terem feito o serviço sujo por mim. Não vou reclamar disso nem fazer desfeita com o herói que me antecedeu. Se luto, mijo sobre as cabeças daqueles que me emprestam os ombros para que eu olhe mais longe.”

“E o futuro que viva com os problemas que deixou de resolver, não é?”

“Pode ser. Nem sou tão forte assim, nem tão heróico nem tão bravo. Sou só um bêbado. Bêbados dizem coisas que vocês precisam ouvir por não ter ousadia de pensar. Por onde acha que os deuses falam? Pela garganta dos pregadores das igrejas enlameadas ou dos portavozes corporativos é que não. Não, receio que não. Esses são os torpes, e é irônico que a eles se preste mais atenção que a embriagados, mas, por favor, não me soque”, Dei diz empurrando discretamente o maço de cigarros para os lados da mesa, talvez esperançoso de que isso possa ajudar o camaleão a serenar – o que de fato seria interessante, as bochechas do senhor à extremidade se encontram em fogo e seus punhos fechados, pesados sobre a mesa, soam ameaçadores.

“Não o quê?”, ele diz pegando o maço com a mão tensa, os nódulos brancos dos dedos estranhamento aparentes.

“Não me soque!”, Onofre Dei ri, o homem da ponta o escrutina um segundo e também resolve rir e respiramos todos aliviados, que isso andava mesmo por caminho esquisito.

“O que li em algum lugar, e concordo”, Dei ainda não se satisfez, “é que andamos planejando o mais mirabolante ataque a deus, e sim, aqui digo do maior deles, criamos essa patética civilização só para isso e agora, bem agora, se descobre que ninguém tem a mínima ideia de onde deus se encontra. Da minha parte, desconfio que ele está ali”, o radialista aponta a terrina de seus três litros que nos chega a mesa.

O perfume é maravilhoso. Mas espere um pouco antes de terçar garfo e faca – vamos deixar que os ruídos e movimentos do mundo nos voltem a tocar, que já deve ter observado o quanto nos distanciamos deles nos últimos minutos, envoltos que ficamos em redoma de silêncio e sombra enquanto esses dois nossos amigos tentavam brigar. É como brisa fresca que o mundo a nós retorna, as luzes do entorno são reacendidas e o vozerio feliz transtorna nossos tímpanos – é a felicidade da vida, se nos permite imagem batida e nem por isso menos correta. É bonito ver como é simples a alegria. Como qualquer bobagem pode alimentá-la. Alguém que chega atrasado, veja na escadaria, já dispara os mecanismos e roldanas que faz radiantes os rostos de quem espera, e um desses rostos se levanta e abraça o atrasado e segreda qualquer coisa a seu ouvido e, presto!, a radiância também nele se instala.

“A felicidade é uma virose”, diz uma voz de suspiros feminina saindo dos lados onde o garçom chega com a generosa tigela. Os três à mesa nos surpreendemos, mas por certo não é dele a voz – Onofre Dei é o primeiro a se dar conta e levanta da mesa em êxtase.

“É uma honra que não pensei hoje merecer”, ele diz para a voz, que natural se trata da voz de Yasmin, vinda na sombra do rapaz que põe a terrina na mesa.

“Vá se catar, gordo”, ela ri, enlaçando o radialista pela lateral e nos dirigindo os olhos negros que, ao menos em nós, nos causa uma comichão na altura do diafragma e torna penosa a tarefa de respirar. “Espero que gostem. Sei que vieram de longe por isso, Dei me disse uma dúzia de vezes, e peço que desculpem por não fazer sala. A gente”

“Não precisa explicar”, o radialista a corta. “Também estamos torcendo pelo italiano.”

Yasmin olha Dei com desconfiança.

“Que foi?”

“Nada”, ela diz, e sua beleza é como um dia nascendo cansado após semanas de tormenta, “mas você sabe que pode ser inútil, não é?”

“Torço assim mesmo”, Dei fala.

“Sei. É tão absurdo. Antes de ser sedado, ele pediu que eu viesse. Disse que eu devia ficar feliz aqui. Que qualquer outra coisa seria errada, e que ele saberia se não estivéssemos bem. Chantagem de quem acha que vai morrer, vê? E não sei porque caralhos vim.”

“Porque é o certo, menina. Isso de ficar em hospital olhando doente, sinceramente, o fazemos por nós, para nos sentir bondosos. Não tem a ver com o acamado. Giuseppe deve achar o mesmo que eu.”

“Que seja”, a diva diz, expira sonoramente e se solta de Dei, batendo palmas: “a primeira mesa servida e fazem pouco do guisado?”

“É isso”, diz Dei. “Fica com a gente?”

“Claro que não”, a núbia ri, e então temos certeza de que é um sorriso profissional.

“De fato”, o radialista Onofre Dei diz enquanto ela se afasta, “não há cabrito no prato. É empréstimo poético. Yasmin, quando o inventou, queria dizer da complexidade de seus sentimentos para com Giuseppe. O italiano é o cabrito. O cordeiro.”

“Tão só uma blasfêmia?”, pergunta a metamorfose em que a estimada leitora – e por conseguinte o querido leitor – se transformou. “Uma diabrura, um jogo com os cristãos, brincadeira sem graça nesse nível?”

“Não, não. Bem que seria engraçado colocar-se Giuseppe a pasto sobre a mesa, todo mês, como fosse o deus católico, não cristão mas católico, sua carne devorada enquanto ele rodava as mesas a ver as impressões dos fregueses, conferir o acerto do vinho de um ou outro comensal, esse tipo de ocupação nobre que têm os donos de restaurantes em nome da perfeita deglutição dos carboidratos, da educação afinada das glândulas gustativas para perceber certa sutileza do coentro posto a dedo miúdo ou da manjerona fresca jogada aqui e ali. Creio que seria ainda melhor que a realidade.”

“Sei, é, sim, mas não importa”, o leitor diz impaciente, “mas, deus do céu, como não tem cabrito? Não chamam a isso Noite do Cabrito?”, pergunta puxando um trago do vapor cheiroso do prato que o garçom monta à sua frente.

“Posso quase garantir. É dessas brincadeiras de amantes. Não o digam por aí, mas é só brinquedo de alcova. Desses de…”

“Pode garantir ou garante? Tem ou não tem?”, ele e ela voltam a farejar o prato, agora montado e belo como um Kandinsky de traços cheios, cores e grafismos entrecruzados ora, levemente tangentes ora, a mancha larga do cozido dominando o quadro como erupção vulcânica em planície de porcelana, as gotas do macarrãozinho árabe insuladas a um canto feito cardume e uns tons verde-azulados de algo vegetal displicentemente arrumados a enfeixar tudo em certa lógica que, paradoxal, não nos atinge na mente que pensa, mas naquela de bicho que compreende sem entender.

“Mas claro que há”, Dei suspira e limpa uma gota de saliva na comissura da boca. “É homenagem de alcova, pelos deuses! O nome do homem. Cabrito, cordeiro, é ele. Giuseppe é o cabrito: Giuseppe Cordeiro. Seu problema, com todo o respeito, é que não quer ver. Giuseppe é tão italiano quanto a Diva ou eu ou você, quanto qualquer brasileiro, mistura aleatória de sabores, e nem duvide que haverá nele alguma lembrança genética de seu bisavô ou de mais antigo ancestral nascido em terras de romanos, como por certo há de haver qualquer traço do cabrito-bicho nessa maravilha de que vamos nos empanturrar, e o que digo é que o Giuseppe italiano é só invenção dele mesmo, ou talvez nossa, provável que de ambos, já disseram aqueles antigos que o universo é uma bela sala de exibição de cinema, nada além disso, e que como todos somos filhos da mesma bactéria, e portanto todos negros, indianos e judeus, nem difícil será lembrar-se do Torá quando diz que só enxergamos do mundo aquilo que levamos dentro de nós, mas vamos deixar isso para outro momento que o que vejo são nossos esplêndidos pratos prontos. Está liberado, filho”, Onofre Dei desenha uma agradecida mesura com a cabeça ao atônito garçom que tenta acompanhar o palavrório do radialista.

“É comida do amor”, diz nosso convidado. Seus olhos estão fechados, há essa expressão de júbilo na boca que mastiga, fios de suspiros escapando das narinas agora largas e logo mais afiladas, no jogo camaleônico que nos fartamos de mostrar e bisar.

Saberia quem nos acompanha a glória de experimentar esses traços que misturam o suculento ao suave, a delicadeza de uma nota isolada à solidez de um naipe completo de metais, baixo sincopado, bateria e guitarras em tom grave? Nos tenta a ideia de contar a receita do prato, suas horas de descanso prévio em vinha d’alhos amortecidas por carinhos de mão de raros massagistas, as especiarias lançadas ao azeite talvez apenas para entreter os legumes em odores, os dedos prendendo brilhos de faca e de tomates sobre a tábua para lançá-los em cascatas vermelhas ao fogo. Nos tenta, mas já desistimos há muito por temor de que as palavras maculem a verdade do prato, tirando dele sua força, a substituindo pela força feminina de gozo e jogos de esconder que as palavras não se cansam de mostrar que têm.

No entorno, repetindo o que disse Onofre Dei sobre o Torá, o vozeio decresce até fingir que some: é trocado por sussurros e grunhidos, dos que fazem vesícula e outros nossos ornamentos internos, e por um sem fim de estalidos de metal contra prato, talher que raspa em dente, vidro que outro igual encontra e toda essa feliz plenitude de ruídos que nos põe em contato com o que quer que seja o prazer de comer em bandos. Dói entender que, assim, quase se chega ao fim, ao objetivo da noite, mas isso não nos deve tirar da mente que estamos vivos agora, não daqui a cinco ou vinte minutos. Seria atroz pecado olhar o futuro – coisa que, por normal, tem como único condão transparentizar o presente, torná-lo inócuo, inexistente em essência. E a vida só corre como deve correr quando fincamos pés no agora e podemos ver que à direita, um tanto à frente, os pratos estão intocados na mesa de Esplendorosa – apenas dela, sim, pois o médico Granel e a pequena Eneida dali sumiram. Esplendorosa treme visivelmente, soluça, ampara a testa na mão cujo cotovelo já se encontra amparado na mesa. O maître Francisco corre a socorrer a mulher em prantos. Conversa com ela, a abraça, balança a cabeça repetidas vezes. O choro diminui até se tornar regato e secar. Francisco a ajuda a levantar e a segura pelo braço.

Onofre Dei não tira os olhos do prato: acontece sempre, diz, ela tem muitas sensibilidades. Peça a um desses meninos que ofereça guarda a ela em nossa mesa, Dei olha muito sutilmente, quase que só com as pálpebras, ao caro leitor, no masculino sim pois que agora é um homem de traços longos e bonitos que tem acento na ponta da mesa, e nem precisamos insistir ou dizer que a sugestão do radialista tem tom de ordem para que o camaleônico conviva lance a mão ao ar, já lá está ela balançando e um garçom a vê e nos vem em voo raso, escuta o que tem de escutar e sai planando ligeiro, confia a informação a Francisco e este a repassa a Esplendorosa, tudo assim nessa forma de motocontínuo porque temos pressa de voltar as mãos, a atenção e a boca ao cozido maravilhoso que aguarda o retorno de nossa gula, que de fato é tanta que nem prestamos muita atenção ao vício de observar e não nos perguntamos o que terá acontecido para que tanto choro Esplendorosa derramasse e tampouco onde foram Eneida e Granel, e ainda que relação tem a falta dos dois e as lágrimas, e isso entre outras coisas mais.

E então o que sucede é que o garçom volta, aí chega ele, enquanto Francisco e Esplendorosa se movem em outra direção, para mais longe, passam pela portinhola do balcão e entram por dissimulada passagem na parede ao fundo, que estranhamente não tínhamos até o momento notado existir, e o garçom diz que Esplendorosa agradece, que virá sim mas antes quer se recompor, conversar com Francisco e o por a par de umas tantas coisas que a perturbam, o garçom diz tudo isso e sai, some, vai pelas mesas atender e some por ter se transformado em um garçom entre vários garçons, foi-se sua individualidade, ficou como aqueles rapazes que enchem academias a fazer músculos e se tornam um tão igual ao outro que nem o outro nem o um existem, se tornam o mesmo e indissolúvel monte de músculos invisível por excessiva repetição, e agora vamos pensando e falando e comendo ao mesmo tempo, buscando preencher nosso vazio de satisfação com o desaparecimento da comida já que, assim como a nós viventes, o objetivo das coisas de comer é o sumiço, a mais total invisibilidade, a dessubstancialização.

“Seria por isso que se vem a bares beber a não mais querer em grupos cada vez maiores, seria para sumir em cardume de iguais, para dizer basta à insuficiência que a vida ordinária oferece quando comparada à vida inventada nos livros e filmes e imaginação?”, pergunta o camaleão com infantilidade mas como se estivesse a ler nossos pensamentos.

“Isso é bobagem”, o radialista responde passando miolo de pão nos sucos que restaram no prato. “As pessoas se embebedam desde o sempre e se os bares estão mais cheios é porque sobra gente no mundo. Se começam a filosofar os bares, o planeta se acaba antes do estoque de garrafas, é o que basta saber, sinceramente, o digo a sério, não se chega a lugar algum inventando razões para o que não tem razão, para o que é por ser, como a vida é esse lugar em que o sol nasce e as coisas giram e os bichos se comem sem objetivo se não continuar, nada tem objetivo além disso, nem a dor nem as tristezas que nossa amiga banha na pia do lavatório para vir com a cara limpa, a inútil cara limpa do choro que vimos e sabemos e que alguns entre nós talvez tenham sentido por lembrar dos próprios choros, e não duvide que virá ela sorrindo, falsa sorrindo, evitando enxergar em outros olhos o reflexo do que nela dói para esquecer o motivo, e se a vida for boa e suficiente e curta o bastante então o esquecimento será aceitável, sem necessidade de chafurdações nas memórias em busca de explicações que não existem e que se existem são insuficientes a compor a vida, que na verdade é isso que aqui fazemos e não a explicação, a explicação é a torpe distorção de espelho mal intencionado, nada, nada além disso.”

“Bobagem é o que você fala”, diz Esplendorosa, que estranhamente ouvia de algum desvão além das costas de nossa mesa, “isso é uma asneira sem fim, um amontoado de palavras que só olha a quem as dita, uma estupidez que nem poderia sair de outra boca senão a boca de alguém que não conhece o amor, que despreza compaixão, que se imagina melhor que deus para não enxergar o que de fato é. Seu discurso é patético.”

“E no entanto eu também a amo”, o radialista nos surpreende com a agilidade de levantar instantaneamente e, em uma longa mesura de filme, puxar a cadeira para Esplendorosa.

Ela ri e o beija nos lábios. Seus olhos ainda brilham úmidos mas há o sorriso forçado nos músculos que sustentam seu rosto, como bem disse o radialista. Aceita a cadeira e senta-se com vagar, aguardando que Dei a empurre por sob sua bunda. Os dois se olham nos olhos como se contivessem segredos: como amantes ou como recém conhecidos em aberto flerte.

“Por não me conhecer e por estar junto a quem estão”, Esplendorosa sorri ainda flertando com Dei, “talvez imaginem que sabem de mim mais do que eu mesma saiba. Eu me acostumo. Não se preocupem.”

“É, e eu que sou acusado de dizer bobagens”, Dei diz. “Essa mulher é a mais sublime tolice ambulante que pude conhecer. Se houvesse deus e anjos, ela os seria todos e sobraria para nos contentar. Mas é uma mulher que sofre, não é?”, o radialista pergunta a ela, e tudo que fala não se nos dirige, mas é tão só a ela que se destina. É tão claro que nos põe como se estivéssemos a olhar a tela grande do cinema, sem qualquer chance de reação além de nos mexer desconfortáveis na cadeira, olhar a um lado e a outro ou coçar uma coceira que nem existe de fato.

“Não me foda”, ela responde. “Estão bebendo vinho? Aceito”, ela pega o copo de Dei e toma um gole avantajado.

“E o que foi feito do marido?”, o radialista quer saber.

“Marido. Ah. Sabe que amo aquele cara? Marido. Bem que podia, não?”

“Que foi feito dele?”, Dei insiste.

“Ahhhh”, ela diz, suspirando e nos olhando um a um na mesa, com vagar. “Ele foi lá fazer a cagada definitiva. Mostrar o pai morrendo a Eneida. Para que ela não tenha de perder um só pai. Ele acha que vai morrer logo mas não se contenta com isso. Tem de piorar tudo. É o jeito que ele tem de amar. Cansei de evitar por ela. Acho que é isso. Mas é estranho porque se todos morrem logo ali na esquina, como ele pensa, eu é que fico para cuidar da tristeza dela. Não é engraçado?”

Dei olha inquieto para os lados. “Não tem nenhum garçom?” Levanta e chacoalha as mãos. “Precisamos de um copo, um copo e mais vinho.” E levanta o corpão que agora oscila a olhos vistos. “Ora, alguém viu.” Dei sinaliza com as mãos o formato, ou o que se supõe ser o formato, de um copo.

Funcionou. Quem traz o copo é Francisco. O maître o deixa à mesa sem cuidado e mira Dei:

“Venha um minuto aqui”, o chama.

Dei levanta, mãos apoiadas na mesa, mas está bêbedo em excesso. Senta outra vez:

“Diga. Não há mais muito segredo.”

Francisco dá as costas e se vai. Quase some nas tramas invisíveis do bar lotado, gente em pé, sentada, andando, entrando e saindo do foco de luz em que nos mantemos no centro do palco da visão que há da casa. Quando o último fragmento de sua camisa branca está a sair do foco, se volta. Retorna. Pega uma cadeira na mesa vizinha. Ela é colocada ao lado de Onofre Dei, um tanto atrás porque já não cabe alguém no horizonte de nossa mesa. Dei o olha e Francisco olha a Dei. O fazem em estranho silêncio. Não é só silêncio de voz. É de alma. É de algo que pede compreensão. Ou socorro.

“Pedi um favor a você há seis anos”, o maître Franciso fala.

“Pediu: pediu que eu não falasse nada que você não pudesse escutar.”

“Exato. Mas agora mudou. Quero saber.”

“Não posso dizer. Não agora. Não nunca. Isso mudou.”

“Agradeço”, Francisco diz, e escute bem o tom com que o diz, “e peço que reconsidere.”

“Fale com ela. Ela pode dizer o que você não queria ouvir e agora quer.”

Francisco enrubesce. Nota como tensiona as mandíbulas e seus lábios ficam finos e claros? Não fosse a barulheira do bar poderíamos ouvir, por provável, os dentes rangendo. Não nos cabe a ninguém na mesa falar o que seja. Nem a Esplendorosa, que tem os grandes olhos desenhados a riscos de cajal tão abertos que parecem prestes a se descolar das cavidades onde se guardam.

“A negra”, o maître começa mas pára: um tempo inteiro em que universos podem brilhar e sumir, a música cessa e o vento espalha a vida como palhas de fantasia. “Yasmin. Ela não pode me contar o que seja no momento. Foi também ao hospital. Estão todos lá. Quase que só falta você, minha amiga”, Francisco passa a mão pelas costas de Esplendorosa e a puxa delicadamente. “Quase porque Giuseppe também lá não se encontra. Desapareceu.”

“Graças a deus”, Esplendorosa diz, rosto aliviado.

“QUE?”, o radialista Dei exclama.

“Sumiu do quarto, da UTI, do hospital”, diz Francisco. “Sumiu do coma.”

“QUE?”, Dei repete, outra vez em pé, mas menos balouçante que há pouco.

“Qual a surpresa?”, Esplendorosa pergunta.

“Ele disse que o italiano desapareceu do hospital, pelo amor de deus!”, diz Dei. “Como assim?”

“Pelo amor de deus falo eu”, o maître Francisco levanta da cadeira com as mãos sobre a mesa. “Acha que sou idiota? Vi o semvergonha correndo pela avenida, pelado, tão bem quanto sei que todos aqui viram.”

“Não, não aquilo”, Dei começa, mas Esplendorosa o interrompe: “Não vi porra nenhuma pelada na avenida, porra, do que é que está falando?”

“É o seguinte”, Francisco começa a falar, nos olhando a todos na mesa, mas pára. Suspira quem sabe tentando esfriar os vermelhos que o tomaram o rosto. Parece prestes a fazer uma bobagem qualquer, como ter um ataque cardíaco ou algo semelhante.

“O que é isso?”, Esplendorosa repete o tom histérico já experimentado mas agora uma oitava acima, e é triste ouvi-la perguntar porque parecia óbvio que ela o sabia, que ela também havia acompanhado Giuseppe à nossa mesa e depois rolando pelo bar e berrando pelos lados do balcão e sumindo no meio do povaréu e tudo o mais, e o triste vem não exatamente de Esplendorosa não tê-lo visto mas dela não fazer parte de nosso talvez esquizofrênico talvez iluminado clube.

“Ele passeou por aqui”, diz o camaleão que é a leitora e o leitor, “sentou bem aí onde você está” (pois!, olhe o arrepio pela espinha de Esplendorosa) “e saiu nu na avenida. Todo mundo viu.”

“Viu o caralho!”, Esplendorosa diz. “Porra, meu, vocês estão bêbados. Até um velho como você, que é que pensa que é?”, agora ela se dirige apenas a Onofre Dei, o sábio radialista, que a observa com a testa franzida, um ar de desgosto como do pai desatento que flagra o filho aprontando algo que não deveria, qualquer coisa como assaltar na esquina ou vender umas drogas ou se aboletar a um canto escuro oferecendo o corpo em troca de trocados, e por fim o que há é que nem o arrasado de seu semblante resiste ao choro dessa feita seco, sem lágrima que se veja, despencando impiedosamente do pobre rosto de Esplendorosa, ele mesmo tão enrugado dos rios que passaram a noite a correr-lhe face abaixo que só faz lembrar os calcinados terrenos do sertão a pleno verão, mas cá está  uma alma que faz algo além de só observar, e é do maître Francisco que falamos pois que ele, sem delicadeza mas com a elegância do gesto certo, que deve ser feito custe o que custar, segura Esplendorosa pelos ombros e a chacoalha uma duas três quatro vezes talvez mais que nos penitencia contar, e segreda coisas ao ouvido dela e quase que a beija o recôncavo da orelha e por um triz não a mordisca o pescoço de pele clara encharcada a perfume e cremes, e segue a fazê-lo, os chacoalhões e as palavras miúdas a ponto de não as alcançarmos, em uma dança a milímetros de erótica e a centímetros de violenta que aos poucos a tira do transe da tristeza, a apazigua e nos permite suspirar sem entender o que tanto a dói mas a entendendo por cada qual ter suas dores incompreensíveis que vez por outra só mesmo pedem um chacoalho que tenha o bastante de energia e o tanto de sedução capazes de remoldar o seja lá o que for que se carrega nos miolos ou no coração, a depender da inclinação de cada um. E é um alívio vê-la em paz, uma de suas mãos a passear leve sobre o cenho outra a segurar a mão de Francisco que ainda em seu ombro descansa.

“Calma”, o maître sussurra. “Mesmo se ele contar, ela não quer a menina. Deixe que as coisas aconteçam. Calma.”

Onofre Dei esqueceu a sede de vinho e seu copo, que passou a noite a se agitar em um sobe e desce frenético, descansa na mesa ao lado do antebraço largo do radialista, os pelos ora brancos ora negros ora vermelhos alevantados como de animal de caça frente ao objeto de cobiça. Seus olhos tomaram um tanto do triste que escorria de Esplendorosa. A mão grande sobre a mesa parece cansada. Ela já tentou se erguer algumas vezes mas volta ao descanso. Não se sabe o que faria se a içasse. Talvez esbofeteasse a mulher que o interpelou tão grosseiramente, talvez elevasse a taça de vinho ou mesmo sacasse do vácuo um teco de parmesão e se pusesse a nos enfeitiçar a todos girando varinha de condão e contando uma história longa e incandescente sobre vertigens que acometem viajantes antes do último passo ao cadafalso da juventude ou da velhice ou de um amor. Ou talvez só pegasse a mão dela e a estreitasse como fazem os amigos. Dei porém nada faz. Só a espreita prenhe de movimentos.

“Desculpe”, Esplendorosa diz, quebrando o silêncio terno que nos tomara nosso foco de luz e de ilusão, e pega ela os dedos de Dei e os aperta, inverte o que devia ter sido feito e põe cada coisa no lugar onde deveria sempre ter estado. Dei sacode a cabeça, sutil movimento, e sorri.

“Entre um velho e outro”, o radialista pondera, “escute o que aquele ali diz. Ele está certo. Yasmin não fará nada. Nem escutará. Ela não quer ouvir. Não quer ver. Nunca quis. Ela e o italiano só querem sumir.”

“Ele já conseguiu”, Francisco desenha um sorriso ao dizê-lo mas o sorriso é quase um tremor em seus lábios.

“Que é que vocês viram?”, Esplendorosa tem em cada mão a mão de um dos amigos.

Francisco balança a cabeça.

“Hora de fechar a conta”, Onofre Dei, o radialista, diz.

Publicado em 7- Invisibilidade Capítulo 7, 7- Invisibilidade Capítulo 7, Escritos, O Dom da Invisibilidade | Etiquetas , , , , , , , , , , | 1 Comentário

Long Playing: Sérvio

Long Playing

2. Sérvio

Sérvio não queria voltar a São Paulo. Quanto mais se aproximava a ameaçadora data, mais se atemorizava. Só queria a tranquila serenidade do amor: aquela de dormir e acordar ao lado das crianças, da mulher, de uns poucos raros amigos, dos cachorros – sim, também deles. Todos um ao lado do outro, as camas viradinhas na mesma direção. Como no exército. Como era em casa antes. O salão quieto pespegado de noite, a cria junta nos colchões enfileirados. Aquele silêncio escuro furado por um assobio de narina resfriada, um resmungo de sonho que levanta feito marola e logo some. A mão da mulher que tateia e se aquieta quando o encontra. Era assim que lembrava. Mas a data estava perigosamente próxima. Teria de voltar. Terror.

Fantasiava: uma hora, olhando à janela, viu no horizonte para os lados de São Paulo uma grossa coluna de fumaça subindo, se avolumando nos topos até se tornar uma cabeleira black-power tremeluzente. Depois, os flashes de jornais de tevê em tom de pavor, imagens de pessoas surpreendidas nas ruas pela quente ventania atômica, as casas se destelhando. Informes de outras explosões tantas em locais tão remotos que desconhecia os nomes. Nada, nada ali onde ele estava. Ali era um poço de feliz tranquilidade, sempre dizia isso – e por certo que acreditava no que dizia. Seguia contente com as explosões, as insistindo para os amigos: “Vê como correm? Viu essa agora onde foi?”

Júbilo, júbilo, júbilo.

Pena: era só fantasia. Não havia guerra nuclear, São Paulo teimava existir e ele teria, teria mesmo, de se ter com isso. E se desaparecesse? Pegava a mulher, a criançada, um cachorro só, que três pesa na hora de sumir. Iam por esse mundo de meu deus, lá para os lados dos índios. Se embrenhassem fundo ninguém havia de encontrar. Podia aprender coisas. Construir coisas – vara de pescar, facão para derrubar banana. Facão não, pelo amor de deus. Facão já deu no que podia dar. Uma enxada. Pronto. Tira mandioca, faz cova de árvore. Mas não cova. Outro nome. Buraco de plantar árvore. Manga, jaca, laranja. Menos cana. Nunca. Não gosta nem de passar perto. Embrulha o estômago. É como comer carne. Não consegue mais. Adorava, mal passada, um espetáculo. Perdeu o gosto. Agora só vai de verdura, feijão, chuchu.

Mas a mulher nunca gosta dessa história de sumiço. Não é certo, diz. E se a polícia encontra o rastro e vai atrás? Que é que se diz para as crianças? Vão pensar que o pai é bicho caçado. Depois crescem com raiva. Perdem o prumo.

Ela tem razão. Sempre teve. Até quando ele fez o que tinha de fazer. Mas não, não, naquilo ela não tinha razão. Não é coisa que se cometa: pai engraçar com filha? Não fosse aquele LP, Sérvio nem ia saber o que vinha acontecendo. O menorzinho que falou. “O vô gosta desse disco. Mas a mãe não gosta.” Como não gostava se ela mesmo tinha comprado? “Ele põe na vitrola e ela chora”, o menino disse.

Semvergonhice. Foi o que Sérvio pensou na hora: semvergonhice. Ou nem pensou. Ele percebeu. Tudo de uma vez: percebeu que tinha o facão acinturado, percebeu que ia sangrar o velho devagar, percebeu que cavava o buraco com esmero. Que o desgraçado via a cova ganhando profundidade enquanto se secava de sangue. Que nem bem morto estava e já comia terra. Sérvio foi percebendo o que ia acontecer. Só não viu nada ocorrer: quando se deu por achado já tinha a cava fechada. Como em sonho.

Engraçado, Sérvio pensou, nunca conseguia lembrar a melodia. “Corre por mim, chora por mim”, mais ou menos isso. Nem a letra recordava. Por isso andava com o disco. Tinha uma vitrolinha lá em São Paulo. Na cela. Os outros camaradas usavam também. Mas o LP ia com ele. Não largava. Para não esquecer. Mas vivia esquecendo. Esquecia das coisas, da música. Do disco, não. Dedicatória na capa. “Te espero nem que seja cem anos amor Laura.” Bonito. De dar orgulho. De tudo. Até do que não tinha por que se orgulhar. Porque foi o certo. Fez o certo. Se o mundo resolveu enlouquecer e achar que certo é errado, problema do mundo.

O problema de Sérvio não era esse. Era outro. Era só que não queria voltar a São Paulo. Mas ia voltar. Como das outras vezes. Nas outras folgas. Indulto, eles chamavam. Nome besta. Um dia isso acaba. Aí, o destino do LP está combinado. É enterro. Não em campo santo. Vai ser em terra de ninguém. Bem fundo. Ao lado do velho.

Desgraçado. Vai ouvir o disco até gastar.

Publicado em contos, Escritos, Long Playing | Etiquetas , , , , , , , , | Publicar um comentário

Long Playing: Marci

Long Playing

1. Marci

A cada dois anos Marci conseguia um jeito de se comunicar com os ex-amantes. Deixava recados precisos em sua linguagem descuidada: bilhete sob o prato que um usaria ao almoço, no restaurante que ela jamais frequentou, email lançado da loja de ferragens onde trabalhava com desgosto há 15 anos, textinho no celular, gravação na secretária eletrônica. O meio usado era variado como o conteúdo da mensagem. A um dizia por acaso ter passado na rua onde ele “morava”, assim no passado, como se lá não mais morasse – embora o bilhete, em guardanapo de sua amada Padaria do Padre, tivesse sido diligentemente amarrado a coleira do cão que ambos adotaram, e que por acaso ficara com ele. A outro segredava ter sonhado com ele um sonho dos bem estranhos. E a um terceiro perguntava se resolvera aquele dilema que, por esses dias, faria seus dez anos ou outro tanto de tempo.

Depois da remessa da mensagem, esperava sem pressa a resposta. Quando esta por fim surgia, a ignorava. Alguns dos antigos amantes costumavam insistir. Respondiam duas, três vezes pelo mesmo meio que Marci utilizara. Descontentes com o silêncio, tentavam um velho email, um telefone arduamente buscado em qualquer teco de papel perdido como marcador de livro. Muito, muito raramente, um deles conseguia falar com ela. E, quando o conseguia, a conversa era tão inconclusiva que melhor teria sido não obter sucesso na empreitada. Marci praticamente nada dizia, e as palavras que restavam mais levantavam dúvidas que as respondiam. Então ela precisava desligar por algum assunto urgente e, após o clique, deixava de atendê-lo até que o amante se cansasse.

De onde Marci conseguia os endereços, telefones, emails e locais costumeiros de homens que, em alguns casos, frequentara há duas décadas? Ela não mantinha qualquer agenda enterrada entre calcinhas e meias de nylon, e nem arquivos secretos em seu computador devassável, irritantemente sem segredos. O mesmo valia para o celular espartano usado meramente para umas ligações aos pais, velhinhos decrépitos simpáticos que mereciam uma curta chamada diária, e a uns pares de amigos e amigas de antiga data.

Poderia memorizar as formas de acesso a cada amante? Decerto. Mas seria curioso. Marci tinha dificuldade de lembrar o rol de roupas deixada ao tintureiro, que por normal não passava de três peças, o que a obrigava a anotar no bloco sempre presente a sua bolsa, em letras desenhadas, detalhes de cada item, data de entrada e de saída da lavanderia, se faltava botão ou havia mancha. Claro que Marci podia ter algum tipo de memória muito seletiva, mas ela jamais se lembrou do meu aniversário ou número de telefone, que volta e meia perguntava embaraçada, tentava decorar criando relações entre os dígitos e marcos de nossa história comum, e por fim desistindo com seu típico aperto de lábios, que significava algo como “que é que posso fazer se sou assim mesmo?”. Nessas ocasiões anotava o número a qualquer papel que, bem guardado em sua carteira com um sorriso maroto, seria invariavelmente perdido.

E, se ainda me restasse alguma dúvida quanto a sua memória de pouca monta, ela com certeza se desfez quando encontrei o bauzinho de madeira lavrada ao lado da cama, na parte inferior do criadomudo. Encontrei não é a forma mais correta de dizê-lo. Ele sempre esteve ali, junto a uns livros e pedras de brilho e aquelas outras coisinhas que mulheres guardam e depois esquecem.

Acho que Marci queria mesmo que eu o encontrasse quando gritou lá do banheiro que o endereço da festa para a qual iríamos estava ali, em algum lugar. O baú tremeu em minhas mãos como se contivesse algo vivo, um preá ou boneco de corda. Naquela noite só vi os disquetes, as microfitas cassette e papéis anotados em cópia carbono com a letra miúda, quase tímida, de Marci. Ela porém lembrou o endereço logo em seguida e não parece ter notado o baú sobre a cama, meio envolto nos lençóis que havíamos bagunçado.

Foi só no dia seguinte que pude entrar naquele universo estranho: cópias de postais, fotos de LPs com faixas marcadas e bilhetes manuscritos, xerox de capas de livros anotadas com perguntas e a voz diminuta de Marci em uma dezena de fitas, além dos arquivos em discos, tantos que me apavorou a ideia de lê-los todos. Tudo cuidadosamente anotado com data e nome do amante.

Por que fui abrir aquilo? Por que, após ler a primeira nota, não me contentei em fechar o bauzinho e esquecê-lo ali onde se punha transparente? O que teria perdido com isso, por Deus, além de não alimentar minha tola curiosidade? Mas não faz diferença. O fato é que não pude deixar a caixa em paz até compreender seu conteúdo, ou até me enganar supondo compreendê-lo, e até ter feito o que tinha de fazer, o que estava determinado.

E agora? Que faço agora, que já há três anos espero o primeiro bilhete, um email qualquer, um vinil que descobriria amar com a capa anotada, qualquer coisa que não me chega? Deus, que fui fazer que nada me chega?

Publicado em contos, Escritos, Long Playing | Etiquetas , , , , , , | 6 Comentários

O Dom da Invisibilidade Cap 6

(quer ler os anteriores? Eis: Capítulo 1Capítulo 2Capítulo 3Capítulo 4Capítulo 5)


Capítulo 6

Acontece algo interessante ali à entrada do bar. Como se disse, e como decerto já se vê, há um passadiço de uns tantos degraus cimentados em meio a extenso gramado. O bar é assim platô no topo de colina verde seccionada, e justo nessa rachadura do verde é que algum rumor se forma. Onofre Dei, que deixava a mesa de Esplendorosa em direção à nossa, gira e para lá vai. Ainda despede vapores do enérgico tapa lascado à mesa – mas mesmo os gases sulfurinos secretados por ele debandam apressados à visão que se apresenta. Ela, a bela Yasmin, lá chega. O bar é tomado de alvoroço elétrico que sua presença usa criar. Responde umas perguntas de raspão, evita pessoas, sorri a outras e se derrama sobre Dei – este cambaleia, talvez pela força quase sobrenatural da mulher, talvez pela avantajada ração de vinho sorvido. Ela o abraça ternamente e se deixa cair nos braços dele, a feitio de amante de filme de amor antigo, cena quase em preto e branco que nos chega em zoom perfeito, as lentes dos olhos trabalhando em sintonia afinada para recuperar todo detalhe que não se pode perder. A tela não admite ruído e de fato não se ouve palavra das bocas dos dois amigos, e nem haveria coisa a falar que não fosse tola frente ao que ocorre. A beleza daquela a quem chamam núbia é como uma punhalada em qualquer razão. É por provável que a dor secrete humores de beleza na amígdala, em vesícula ou qualquer outro secreto quinhão do corpo humano, pois que nem tão incomum é se ver na mais doída circunstância os mais luminosos semblantes. Sim, a dor por vezes fabrica o belo, é o que se vê. A tempo de relógio parado, podemos admirar a perfeita crispação da pele de Yasmin, com luz fluida a contornando em sonhos que não são, a bem da verdade, partes dela, mas de nós outros que a observamos e nela imprimimos nosso desejo. Quem sabe Yasmin nem exista – que impede ser ela uma vontade coletiva substanciada? Mas mesmo que assim seja ela se move agora, despede-se com maciez de fado do peito e dos braços de Dei e, o segurando pela mão, anda em flutuação de barco sem aparentemente prestar grande atenção ao que seja, o radialista como lastro, e ambos cortam o horizonte de mesas com paradas a cada tanto para prestar uma informação a Granel (“em coma induzido, tudo certo, mas quero conversar com você”, dedos em afago nos cachos de Eneida), a uma senhora de traços orientais que se conhece ser a prefeita (“deixei a informação lá, agradeço muito”) e a outros tipos que ela escolhe pelo percurso, até desembocar na beira da portinhola do balcão onde o marmorizado Francisco se estaciona, olhos vagos. Yasmin larga a mão de Dei. Ela não dá chances ao maître: o alcança em instantâneo e lança os antebraços e mãos finas por sobre seus ombros. Francisco a enlaça as costas. Congelam-se ali, sombra e luz, o rosto dele envolto nos cabelos dela, e umidades, não se sabe se feitas pelo calor abundante, pela tensão entre ambos ou pelos olhos comprimidos, untam as faces encontradas uma na outra enquanto a balbúrdia do bar, desinteressada da cena, volta a crescer, cada freguês envolto em seu cômodo quinhão de dor e prazer sem maior preocupação se não a própria, e os dois unidos já não são senão estátua cinzelada em ilha que os rumores cingem como ondas, lançando uma e duas gotículas a se somar às que escorrem por seus rostos, e só escorrem porque há uma lei de gravidade as chamando ao solo, pois de desejo elas ali ficariam, autônomas e em formato de lago, arrefecendo a dor, o calor ou o que quer que as tenha gerado.

Adiante no gramado do mesmo modo úmido, mas sem dúvida em virtude de chuva e não de águas secretadas por corpo humano, uma fugaz sombra gargalhante corre sobre os matos e ruma para a avenida e circula entre os carros. Os olhinhos de Eneida se arregalam seguindo o passante veloz e ela o indica a Granel, que não faz gosto em voltar-se à cena. Besta ele: perde a chance de ver, como o vemos, Giuseppe quase nu em disparada. Onofre Dei, que como pode notar vem retornando a nossa mesa, também observa a aparição, e nos chega rindo com algo de infantil no rosto – sinceramente, ele diz, o italiano que imaginamos enlouqueceu. E se querem saber, vou ser sincero, creio que todos nos amalucamos. Não viram que lá estava eu a convencer a nossa pobre enfermeira sorumbática Esplendorosa, que nome seria esse que lhe deram?, e a meu confrade Granel, outro que lhe conviria novo nome, a convencê-los os dois a me dizer uma mísera verdade, e nem a isso se aventuram, ou não sabem o que seria verdade ou se negam a enxergá-la ou ainda, e eis o pavor, dela se envergonham frente a um amigo, coisa que suponho soa inconcebível a todos, ou seria meu erro e então justo a amigos é que se deve maior vergonha por delito cometido? Não, veja, não estou criando suposição de que tenham delinqüido, mas por que se negam a falar o que eu gostaria de ouvir? De fato estou prestes a dizer algo que não devo, e quase o faço como vendeta, o que até certo ponto me pareceria justo dada a conformação das ocorrências, e tenho duramente aprendido que um mal só se cala com outro, me perdoem os ouvidos sensíveis e me desculpem os deuses pelo dito, que bem sei me será breve cobrado duramente quando ao conhecimento de minha esposa cair, ela tem lá suas razões para não aprovar meu fígado negro, como o de Stephen Zweig mas não sou do tipo que se mata, e se então a vendeta é inevitável já que anunciada que se fale logo uma informação que por sua dureza soará talvez maledicente, embora seja apenas uma informação, e ela, essa informação, esse fato concreto transformado em palavra assoprada, é que meu confrade Granel, que é douto médico e benquisto na cidade, mantém uma relação de ambigüidade social com Esplendorosa, vale dizer são casados em não-essência mas apenas em papel frio, se gostam mas não o bastante a se freqüentar os corpos, desenharam um contrato de sobriedades em que a infelicidade crônica dela pode se exercitar pelo impossível e o amor dele a outro homem pode se disfarçar em um infernal jogo de espelhos em que julga viver feliz ou em certo equilíbrio. Indubitável que essa não é a vendeta, esse é dado que ouvindo o que se disse logo se sabia, penso até ter sido verbalizada a situação curiosa vivida pelo casal que adotou essa criança maravilhosa, os deuses me saibam ser clementes por não ter eu mesmo o feito, e bem podia tendo a ajudado a encontrar logo que nascida esses dois como mãe e pai, diga-se bons pai e mãe, por natural melhor do que eu poderia ter sido, porém talvez a menina perca o pai por uma dessas contingências da vida, e essa é das piores, a morte, ou sua possibilidade mais imediata, mais desenhada no cotidiano, em virtude de meu amigo ter se contagiado durante uma operação banal de vesícula, apêndice, seja lá o que mexia no corpo de outro, um desprezível pingo de sangue o voou até os olhos e pronto, o micróbio se imiscuiu nele, dançou uma valsa de morte nele, e conquanto se fale que as garrafadas mágicas transformadas em pílulas coloridas possam mantê-lo são e salvo dos micróbios por todo seu prazo de vida, conquanto se saiba que isso é verdade é também uma verdade relativa, e meu amigo Granel mais se pega no relativo que na verdade, de forma que anda alimentando uns pensamentos nada estranhos porém nada bons a respeito de seu próprio fim e, pior, cisma envergonhado com a possibilidade de morrer, morrer se transformou em vergonha, como se fosse falha pessoal, algo a ver com caráter ruim, fraqueza, feiúra e tudo que não é aprovado e bom e perfeito como todos deveríamos ser, então expirar é a quintessência da fraqueza, quem morre tem culpa pelos cheiros expelidos e pela situação que experimenta, é o aborrecimento e a vergonha elevados a sua potência máxima, e esse é o mundo em que vivemos, no qual a beleza da morte se reduz ao preço do funeral e à pusilanimidade do defunto, não ao fim dos fins, não à observação de sua banalidade tão perfeita quanto um cair de tarde ou um orgasmo, essas dissoluções que as olhamos e nelas por tantas vezes nos negamos a ver o belo do arremate, da impermanência, da viagem à transparência.

Embora tenha dito isso com alguma seriedade contida, quase funérea, há alegria no rosto redondo e avermelhado de Onofre Dei, o bom radialista que encanta as manhãs da cidade e, por vezes, solta também a voz de barítono modulada nas noites, aqui sim claro que em gravação, não obstante o gravado ter também sua graça a quem o ouve já que nem é tão difícil estar a passear no auto, sob o embalo das ideias de Dei salpicadas por umas tantas melodias de jazz por ele apreciadas e, súbito, vê-lo ali à esquina ou ao café entornando um capuccino ou mesmo virando uns copos e falando a se baldar com qualquer um que passe à rua, já que parece conhecer a todos pelo primeiro nome e de todos ser conhecido, tal a profusão de confrades coleciona. Mas o interessante, reveja o que dissemos agora, é não se encontrar nas palavras menção à presença de sua esposa. Não deixa de ser curioso ele a ter citado, de forma crítica mas bem-humorada, se tanto uma vez nessas horas todas em que nos guarnece. Teria nosso nobre anfitrião algum problema em relação a ela ou mesmo alguma séria doença de ciúmes, dessa que por vez faz homem de bom caráter abster a mulher de presença social, quando naturalmente ela se deixa conduzir a esse estado lamentável de manipulação, ou ainda teria a moça doença capaz de impedir livre trânsito? Correndo o risco de receber resposta truncada ou ríspida admoestação do radialista, ousemos a ele perguntar a pergunta que nos acode.

Dei ri à questão. É isso mesmo que nota também? Está um pouco sombreado seu rosto, mas os olhos brilham um brilho de riso, não é? A boca levanta as pontas das asas – confere? – e ele até suspira. “E breve vem o cabrito”, torna a suspirar. Não terá ouvido a interrogação? “E breve nada disso, eu digo nada disso mesmo, terá qualquer valor”, continua o radialista. “Vejo que a senhora ali à frente, que faz pouco bem me parecia homem barbado, perdoe-me a falta de atenção, ficou aflita com a indagação a mim lançada, como se bicho feroz fosse eu capaz de ação violenta, asseguro isso ser lenda criada por uns amigos que ajudei a enterrar, e aí há outra lenda contida nessa desagradável experiência de jogar o punhado de terra sobre o caixão de quem se ama, por certo a amigos se ama mesmo àqueles que criam lendas para fazer graça e depois não sabem como conter a diabrura cometida, o que por si já significa não ter eu o poder de tirar a vida a quem quer que seja, por favor não se deixe enganar pelas vozes que gastam tempo falando estranhezas a meu respeito, ainda mais que se tais poderes encerrasse minha mulher não teria passado à invisibilidade, como para meu desgosto passou, nem estaria eu também tentando fazê-lo de formas variadas, mas nenhuma realmente eficaz e rápida como pular de parapeito ou se arrojar à frente de locomotiva. Claro que entendo a pergunta, eu mesmo a tendo suscitado ao comentar que minha mulher não aprecia meu fígado negro e sem dúvida me lançaria à cara quaisquer negativismos meus, mas não imagine que ando a par de fantasmas, a explicar-me os atos a eles, balbuciando com o ar no corredor da casa, tagarelando no meio da calçada como idiota sem alguém ao lado, falando ao volante do carro como se uma cabeça do painel emergisse. Não o faço. Os espectros por infelicidade não me freqüentam. Teria curiosidade de ouvi-los e prazer em abrigá-los caso o fizessem. Mas o amor, eu digo com certo recato por às vezes me envergonhar falar em amor, ele tem uma característica de permanência que os tocados por seu dom o sabemos. Não se trata de aparição do além – é tão só essa particularidade, que faz o amor se penetrar naquilo que somos, se entretecer nas linhas que nos compõem, e quando isso ocorre o amor que recebemos fica assim a ser uma voz a mais dentre a infinidade que cria nossa voz, daí eu dizer que ouvirei boas da minha mulher, apesar de ela não mais existir”, Dei desenha ao ar um melancólico arco com mão direita e a deixa cair lenta sobre a mesa. Sua vara de condão, lascada de parmesão, escorrega para a palma como a simbolizar algo, mas nada simboliza. É tão só mão com um teco de queijo dentro. Seus olhos nos passeiam os rostos e estamos todos, ele inclusive, quase em paz. Curioso como o silêncio interior pode toldar a balbúrdia externa, por mais diversa e ruidosa seja esta.

E no entanto é chegada a hora. O cabrito lá vem. Temos decerto receio em o anunciar, já se vê pela forma direta e meio sem graça se o faz, dada a dificuldade de demonstração sem truques e magias multimídia da tensão que doma os atores, começando do maître Francisco e chegando ao último dos garçons – aquele mesmo rapaz magricela que já nos esteve a serviço. Da magnífica Yasmin não falamos que longe está do horizonte de eventos: após deixar o comprido abraço emprestado a Francisco, e dele receber o mesmo em troca, se pôs cozinha adentro, e desta não temos visão e tampouco ideia de como soarão seus móveis, bocas de fogo, instrumentos de corte e mistura e alquimia, nem ainda como se imprimem aos olhos o moço e as meninas que servem aos mandos da diva. É terreno em que nos gostaríamos de aventurar e ao qual, porém, não nos achamos permitidos à visitação ou preparados pela imaginação a penetrar sorrateiramente. Trata-se com certeza de área vasta em perfumes e essências, com luzes de chamas e umas sombras sublimes como se pintadas por grão-mestre de óleos e aquarelas, sem aquele clarão de centro cirúrgico que apetece a alguns construtores de cozinhas modernas – tipos, aliás, que no nosso fraco entendimento nada sabem do que seja preparar comidas. Se existe o risco de nos enganar quanto ao miolo do quarto de cozinhar? Pois, como não? Talvez a aparência brejeira exterior da cozinha, esculpida em velhos tijolos sem pele e madeiras grossas incrustadas de musgos e pequenos vegetais peludos, nos leve à noção romântica de salão colonial – quando o interior pode até se revelar um estupendo ninho de modernidades, com seres digitais ajudando ou mesmo gerando a comida que nos será apresentada, as garotas de Yasmin robotizadas cortando vegetais em escala fordista sobre mesas em metal composto evolando luzes lilases. Sim, esse desastroso cenário é possível. Vivemos um mundo em que quase nada é o que aparenta. Aos que queremos enxergar, nos dói a vista buscar a realidade sob tantas camadas de tinta, tantas evoluções circenses camaleônicas. Não seria mesmo isso que causa encanto na noite do cabrito? Sua rústica natureza, ainda que revestida de uma pantomima de imprevisíveis sabores, não seria a única possível resposta de momento à imensa farsa em que vivemos? Mas, perdão, estamos a transformar a delícia em metáfora, e nada há de menos metafórico que o perfume soberbo de azeite tostando alhos e ramas de alecrim a nos alcançar agora, clarins anunciando o advento do banquete.

Capítulo 7


Publicado em 6- Invisibilidade Capítulo 6, Escritos, O Dom da Invisibilidade | Etiquetas , , , , , , , | Publicar um comentário